O fantasma da OPERA

A  primeira vez que eu cometi um erro monumental num experimento foi lá por 1983 ou 84. Eu fazia o mestrado na Unicamp, onde junto com o trabalho de pesquisa individual de cada um dos membros do grupo tentava desenvolver uma tecnologia de células solares de silício amorfo com 4% de eficiência. Tínhamos preparado um,a nova série com uma camada tipo-n diferente e eu fiquei de medir a eficiência num simulador solar. Era o final do expediente e a primeira célula que medi deu mais de 6%. Todas as demais ficavam entre 5 e 10%. Chamei colegas para verificarem se eu não estava fazendo nada de errado. Nada. Alguém teve a brilhante idéia de ligar para o chefe do grupo vir de casa para comemorar. Quando ele chegou ele não acreditou nos 10%. Apesar de não violar nenhuma lei fundamental da Física, 10% de eficiência com aquela tecnologia estava acima do atingível naquela época. Na verdade alguém numa medida anterior mexeu num controle que ninguém usava e  multiplicou por 10 o ganho de um amplificador de sinal. Nossas células tinham cerca de 1% de eficiência. Mesmo hoje em dia é muito difícil atingir eficiência de 10% com essa tecnologia. Paguei meu mico, pedi desculpas a todos e o episodio só teve conseqüências para o meu ego machucado.

Há ocasiões em que pesquisadores estão certos de que há algo de errado nas medidas mas não conseguem encontrar o que está errado. E o que fazer quando os resultados obtidos violam alguma lei fundamental do universo?

Nos últimos dias a imprensa mundial vem noticiando com estardalhaço o que pode ser uma das mais importantes descobertas dos últimos cem anos: neutrinos movendo-se mais rápido que a luz. Isso teria sido detectado pelo projeto OPERA no CERN. Minha primeira reação, de professor de laboratório de física moderna: mais um grupo de pesquisadores que não sabe tratar erros experimentais buscando notoriedade, a exemplo de vários casos recentes discutidos aqui e em outros blogs. E o anúncio foi feito antes que um artigo tenha sido aceito em alguma revista científica respeitada...

Sexta-feira uma versão preliminar do artigo foi divulgada no repositório ArXiv, junto com o seminário de Dario Autiero, que falou pela OPERA. O seminário dura cerca de uma hora, com mais uma hora de perguntas. Meu julgamento precipitado do grupo estava completamente enganado. Trata-se de um pessoal sério, que sabe muito bem o que está fazendo e trata os erros de forma sofisticada e aparentemente correta. Eles mesmos estão surpresos com o resultado. Em resumo, medir velocidade é sempre medir uma distância e um tempo. A maior fonte de erros nesse caso é a medida do tempo. Eles supostamente conseguem uma precisão muito boa na posição usando uma versão sofisticada do GPS, que dá conta em tempo real do continental drift. Eles conseguem uma precisão de 20cm em 1000km, e afirmam que essa medida poderia ser melhor (1cm) se não se tratasse de um túnel subterrâneo! Ao medir eles detectam os neutrinos chegando 60ns com uma incerteza de 10ns adiantados em relação à velocidade da luz.  Chamamos esse tipo de resultado de "6σ", pois o  sinal é 6 vezes maior que a incerteza σ.
Vale a pena mencionar que essa NÃO é a primeira vez que são detectados neutrinos andando acima da velocidade da luz. Um artigo do experimento MINOS do Fermilab detetou neutrinos a velocidades supraluminais mas os desconsiderou devido às incertezas nas medidas. E há o caso da supernova SN1987a, quando o feixe de neutrinos originado na explosão da estrela chegou à terra 3 horas antes da luz. No entanto, aparentemente o resultado da OPERA não é consistente com o da SN1987a.

 Há um aspecto sociológico interessante. Na Itália, país com uma cultura bastante chauvinista, onde fica o detector em que foram feitas as medidas, o jornal La Stampa não tem o cuidado dos pesquisadores da OPERA e avança tomando como correto o resultado da equipe italiana e colocando a relatividade de Einstein em questão. Ainda bem que ciência não é copa do mundo!

O blog de um físico teórico engraçado mas de estética duvidosa menciona, por exemplo, que desconsiderar a variação do índice de refração da atmosfera (1.00003 contra 1.00000 no vácuo), procedimento legítimo para quase todos os proósitos do GPS, pode ser a causa do aparente adiantamento de 60ns na medida do tempo. O mesmo blog levanta outras hipóteses. O sistema GPS não foi projetado para tamanha precisão. Caso neutrinos realmente andem acima da velocidade da luz há uma dependência da velocidade com a energia que deveria ser observado. Aparentemente isso não ocorre.

Se os resultados da OPERA estiverem corretos, nosso entendimento do universo precisará mudar. A teoria da relatividade restrita, que foi testada tantas vezes, precisará mudar. Minha intuição vai na direção de a relatividade estar correta e alguma fonte de erro sistemático não estar sendo considerada. Extraordinary claims require extraordinary evidence. Afirmações extraordinárias exigem evidências extraordinárias. Essa frase foi popularizada pelo extraordinário divulgador da ciência Carl Sagan. Infelizmente, as evidências do OPERA apontam mais para um erro sistemático que escapou dos pesquisadores do que para evidências extraordinárias.

Update: O excelente Física na Veia! do meu colega Dulcídio Braz Jr. tem uma abordagem mais do ponto de vista da Física. Vale a pena conferir. É o nosso segundo bate-blog, expressão cunhada pelo Dulcídio!

Update 2: Citando Bob Park: "Disseram-me que Andrew Cohen e Sheldon Glashow (prêmio Nobel em 1979) em arXiv 1109.6562v1 fazem a observação que neutrinos superluminais iriam irradiar pelo mesmo efeito da radiação de Cerenkov quando a velocidade das partículas excedesse c/n (onde n é o índice de refração do meio). Isso torna claro, se já não estivesse, que a suposta observação de neutrinos superluminais está errada. Ninguém sabe o porquê."

Update 3: Assunto encerrado. Saiu na Science. O suposto efeito era devido a uma má conexão entre um cabo ótico e um cartão eletrônico. A relatividade está salva.

Comentários

lygiaeluf disse…
muito bom ler isso: escrito com conhecimento de causa, bom senso e lucidez.
é esse tipo de informação que nós, não cientistas, precisamos para entender um pouco mais esse modo de conhecer o mundo.
gracias!
João Antonio disse…
Um blog como esse é um achado, realmente muito interessante este texto. Eu que sou um bacharel em formação (cursando ciência da computação).