Criacionismo na Unicamp


Era novembro de 2007. Abro meu e-mail como todo dia e encontro uma mensagem com o cartaz ao lado dirigida a toda a Comissão Central de Graduação da Unicamp, da qual faço parte como convidado. O cartaz chama a atenção por vários motivos:
1. Tem uma foto do palestrante, prática mais comum nas palestras de auto-ajuda do que em eventos acadêmicos.
2. O sujeito da foto usa uma gravata, acessório pouco comum nos meios acadêmicos.
3. O logotipo da Unicamp aparece junto com o de uma certa Reasons to Believe. um nome estranho para uma instituição acadêmica.
4. A legenda da foto atesta que o personagem de gravata é "Fazale Rana, Ph.D., vice-presidente da Reasons to Believe". Será uma empresa?
5. Entendo que o cartaz convoca para duas palestras, ambas de voltadas para difundir as idéias do Intelligent Design, ou Projeto Inteligente, uma das novas roupagens do velho criacionismo, a doutrina que propõe que a evolução só pode ter acontecido por obra de um desígnio superior.

Envio mensagens para colegas para saber mais. Ninguém da alta administração da universidade, inclusive o diretor da Faculdade de Ciências Médicas onde ocorrerá uma das palestras tem a menor idéia de quem organiza isso.

Recebo outro convite para os eventos. Dessa vez o Dr. Rana é apresentado como "O bioquímico Fuzale Rana, da Universidade de Ohio". Estranho. Eu não poderia imaginar pesquisa sobre criacionismo numa universidade séria. Nem tinha. A Reasons to Believe é uma das muitas organizações que propalam o ID, o Dr. Rana na verdade não faz parte do quado docente da Ohio University (onde fez seu doutorado), mas leciona Apologética Cristã na Biola University, uma pequena universidade religiosa no sul da Califórnia.

Na verdade o Dr. Rana foi trazido ao Brasil não por um projeto de pesquisa envolvendo a Unicamp mas pela Igreja Batista da Cidade Universitária (IBCU). Segundo sua página ele "realizou duas palestras na Unicamp, uma na UNIP e duas na IBCU com o objetivo de levar a esses públicos informações científicas que respaldam a Fé cristã". Espero que a Fé cristã não precise desse tipo de respaldo. Membros da igreja com vínculos com a Unicamp obtiveram espaço e fizeram parecer que se tratava de um evento da universidade.

Eu não assisti a nenhuma das palestras. Elas foram gravadas e podem ser vistas aqui. Não perdi nada. O Dr. Rana pelo menos reconhece que a terra tem mais de 6 mil anos, o que o coloca um passo adiante dos criacionistas mais radicais. No entanto, repete ladainha pregada pelos defensores do ID, de que a complexidade da vida humana não poderia ser obra do acaso, e como conseqüência a existência de um Criador (note a maiúscula!) é um fato científico. Todas as coisas complexas que conhecemos, de um relógio a um avião de grande porte foram projetadas por alguém. Os humanos são seres complexos, portanto eles certamente foram projetados por um Projetista Supremo (note as maiúsculas!).

Cada asserção está correta. A complexidade da vida humana não é obra do acaso. Todos os artefatos tecnológicos complexos criados pela humanidade foram projetados. Cada razão está errada. Muito errada. A existência de um Criador não é um fato científico, nem os seres humanos foram projetados.

A complexidade da vida humana é o resultado de um processo lento e contrário ao acaso chamado de seleção natural. A sobrevivência do mais apto. Ao longo da história da nossa espécie ocorreram muitas mutações. Cada mutação (que ocorreu ao acaso) deixou pelo menos duas possibilidades. Só sobreviveu a mais bem adaptada às condições. A complexidade foi se estabelecendo aos poucos, um passo por vez, ao longo de milhões de anos.
Não é preciso invocar um Criador para entender a vida humana.

Preocupa-me muito a ofensiva dos criacionistas sobre os campi do interior de São Paulo (evento similar ocorreu na UFSCar). O simples fato de a comunidade acadêmica abrir espaço para esse tipo de discussão, em nome da pluralidade, já é uma vitória para os criacionistas e defensores do ID, pois confere a suas idéias um almejado status de ciência. Criacionismo e ID são assuntos religiosos. Religão não é ciência. Criacionismo não deve ser ensinado nos livros escolares como "uma alternativa" à Teoria da Evolução (note as maiúsculas!).

Melhor teria sido se o Dr. Rana limitasse sua área de atuação aos muros da IBCU.

Comentários

Meira disse…
Amigo!
Como você compatibiliza o gradual processo de evolução, isto é, a gradual elevação de complexidade dos seres vivos e a Segunda Lei da Termodinâmica (Entropia)? Ao defrontarmos a sua idéia com a Lei citada, nos deparamos com um paradoxo!
Como você explica o surgimento da primeira célula? Teríamos uma probabilidade ZERO de que cada parte da célula se juntasse ao acaso e ao mesmo tempo, para que ela "Funcionasse".
Eduardo disse…
O mais incrível é ver comentários como este do Meira. Esta argumentação da Segunda Lei da Termodinâmica na mão de quem não entende nada de ciência é deprimente. Vou deixar a resposta com o Dr. Harold J. Morowitz[1], que é um dos maiores conhecedores da Termodinâmica em sistemas vivos -- http://www.panspermia.org/seconlaw.htm

[1] http://cajal.unizar.es/eng/part/Morowitz.html