Dentadura robótica

A comunidade científica criou ao longo dos anos mecanismos de auto-controle. O mais importante para o desenvolvimento da ciência é talvez o processo chamado em inglês de peer review, que pode ser traduzido livremente como revisão pelos pares. As revistas científicas mais prestigiosas não publicam nada que não tenha recebido um parecer positivo de pelo menos dois ou três cientistas independentemente. Isso é uma forma de garantir que pelo menos alguns experts no assunto foram convencidos pela argumentação do(s) autor(es) e o artigo não contém resultados absurdos ou idéias malucas. É graças à estrita revisão por pares que publicar em revistas como Nature e Science dá tanto prestígio aos cientistas. O processo não é infalível, mas é o melhor que temos. Faz todo sentido portanto desconfiarmos de idéias, teorias, terapias, especialmente as mais surpreendentes ou mirabolantes, quando elas não passaram pelo crivo da revisão pelos pares.

Um cartaz afixado em uma cantina da Unicamp anuncia um curso de biocibernética bucal. Bio o quê? Essa deve ser a primeira reação dos pacatos transeuntes que o lêem. Por um módico investimento de 8 x R$ 340 (em 2008) e mais 8 x R$ 400 (em 2009) é possível fazer um Curso Básico de BioCibernética Bucal de 160 horas. Os temas dos encontros são no mínimo não-convencionais. Algumas palavras-chave como eutonia, distonia, setênios fazem acender uma luzinha de alerta. Adorei o tema do 11° encontro: "Decodificação dos sistemas através da boca; interpretação dos sistemas corporais e comportamentais. Somatotopia psicológica e comportamental dos dentes."
Não resisti a aprender mais sobre o assunto. Muita informação está na página do Instituto Brasileiro de Bio Cibernética Bucal (BCB). A BCB nasceu em Araçatuba em 1969. Na década de 70 os criadores da BCB, professores da Faculdade de Odontologia de Araçatuba lançaram seu primeiro livro. Daí para frente seguidores começaram a aparecer e atualmente há uma comunidade atuante em várias cidades.
Afinal, o que é BCB? Nas varias páginas sobre o assunto é difícil encontrar uma definição precisa. As melhores que encontrei foram:
"Na década de 60 dois odontológos paulistas, depois de muito atender, observar e tratar os pacientes e também pesquisar, criaram os princípios de uma escola de odontologia chamada de Bio Cibernética Bucal. Sua principal característica é a resposturação das funções da oralidade na expectativa de reverberação somática a distância (Baldani e Figueiredo)."

"Trata-se de ciência odontológica que considera a programação biológica contida no DNA humano, suas praxias e as suas repercussões na oralidade decorrentes, principalmente, do estilo de vida do paciente."
Se alguém entender isso por favor envie um comentário. Se conseguir conciliar as duas definições melhor ainda. Tem outras definições igualmente claras mas que ocupam meia página. Uma foi qualificada por um dentista blogueiro como conversa de vendedor de livro misturada com maçonaria.
A BCB permite um estudo de caso sobre como nasce uma pseudo-ciência. Não é todo dia que isso acontece em Araçatuba. Com todo respeito pela Faculdade de Odontologia de lá, que atualmente é uma instituição de qualidade, os proponentes e principais praticantes de BCB têm uma formação científica no máximo limitada. Todos que encontrei na web foram formados em instituições de reputação científica limítrofe, como a própria FOA (na época), a FO de Presidente Prudente, a UNIP, a UMC, a UMESP, a Unicastelo, o Instituto Brasileiro de Estudos Homeopáticos entre outras. Locais que possivelmente formam bons profissionais mas não formam cientistas. Pessoas com treinamento científico deficiente podem se deixam levar pelo palavreado rebuscado e pelo jargão recheado por conceitos que elas não entendem direito (nesse caso específico, sinceramente, nem eu). Há um reforço comunitário na medida em que abrem-se cursos e clínicas em várias cidades. Organizam-se eventos sobre o tema. O cenário está armado.

Como é comum nas pseudo-ciências, os praticantes da BCB consideram-se vítimas de um suposto conservadorismo da comunidade científica que não aceita as idéias inovadoras e revolucionárias. Nada mais falso. Poucas áreas do conhecimento humano são tão abertas a mudanças quanto a ciência. Todo um arcabouço teórico pode mudar rapidamente quando novas descobertas assim exigem. Foi assim com o nascimento da mecânica quântica. Está sendo assim na medida em que aprendemos mais sobre o genoma. Ocorre que na BCB como em muitas otras terapias complementares e alternativas as idéias não encontram suporte nos fatos. Nesse caso fica difícil convencer os cientistas.

Os conceitos e idéias da BCB estão publicados em vários livros. Há um Instituto Brasileiro, um Grupo de Estudos (GEBICI), seguidores em várias cidades e mesmo em outros países. No entanto, não é possível encontrar um único artigo sobre o tema publicado em alguma revista científica com revisão por pares. Seria difícil convencer 2 ou 3 especialistas da "estreita correlação entre alterações na relação dos maxilares e alterações posturais" ou que "Desequilíbrios orais podem provocar desequilíbrios posturais e outras alterações biofuncionais" sem que tenha sido feito um estudo duplo cego controlado. Ou ainda que "a vida humana está programada em ciclos de sete anos". Para validar a BCB seria pelo menos prudente ter resultados publicados em pelo menos uma revista de alta reputação científica.

O GEBICI está organizando seu Décimo Encontro em Campinas de 16 a 18 de maio próximos. Como a sede do GEBICI fica aqui em Campinas, a próxima vez que eu for a um dentista vou antes me certificar que a obturação não vai interferir com a minha postura! Vai que essas coisas holísticas sejam uma via de mão dupla...

Agradeço à Juliana por ter me apontado a BCB. Esse post é dedicado ao amigo Guerreiro, araçatubense radicado em Campinas como a BCB.

Comentários

Anônimo disse…
E eu que pensava que tais institutos de pseudo-ciência eram propriedade privada dos estados unidos, onde qualquer vendedor de banha da cobra consegue ter poder suficiente para meter o país a votar em projectos desprovidos de conteúdo mas que, com o uso do jargão científico, passa por ciência aos olhos dos leigos.

Bem sei que também em Inglaterra os homeopatetas gozam de uma opinião pública favorável devido à ignorância do príncipe de Gales, mas nunca pensei que este problema estivesse a ficar tão difundido. Tenho que averiguar se também em Portugal existem destes institutos de pseudo-ciência. Mesmo que não consiga mudar grande coisa nas políticas governamentais pelo menos vou escrevendo sobre estes problemas.

Parabéns pelo blog e por nos alertar contra estes problemas.

Cumprimentos
Anônimo disse…
Ola parabéns pelo blog, muito interessante, virei fã.

Obrigado por citar meu texto, na verdade respeito muito os profissionais de Araçatuba, meus pais formaram-se lá na década de 70, mas sinceramente, Bio Cibernética Bucal não me convence...

[]´s JV
Obrigado pelos elogios de todos!
Eu também respeito muito os araçatubenses. Só quero chamar a atenção para o que acontece quando gente com as melhores intenções mas sem treinamento em ciência resolve inventar uma nova teoria, um grupo de seguidores passa a acreditar nela e a coisa cresce. Isso acontece d emonte no mundo, inclusive no Brasil.
Anônimo disse…
Ai meu pescoço...pior do que acreditar na Biocibernética, é passar pelas mãos desqualificadas de vários CDs que fazem restaurações sem um mínimo de ajuste oclusal...passei por isso e pensei muito na BCB. Fiz uma restauração com um colega e tive dores e desconfortos na região cervical...omoplata....braço....até conseguir alguém q me restaurasse adequadamente o dente e magicamente....tudo passou! E aí? Se interfere na cervical, interfere na postura...e por aí vai.
Unknown disse…
A metodologia cientifica reduz, empobrece nosso "objeto" de pesquisa, é uma camisa de força.

Nós que atuamos com BCB, já demos o salto paradigmatico, já mudamos o olhar clínico, a forma de ouvir/observar/atuar nos nossos pacientes; reconheço que quem se graduou nas melhores universidades, não incomum são os mais iatrogênicos e consequentemente os mais preconceituosos; de forma que se não houver abertura, se torna impossivel para o colega captar a mensagem do novo tempo.

O que realmente nos interessa é o bem estar do paciente,o "fato clínico", que é soberano e a humanização da relação paciente profissional, demanda da sociedade através da OMS,UNICEF e outras.
Vide as PICSB conforme norma do MS.

A ciência mercantilista, capitalista não nos interessa e nem aos novos tempos.

Saudações cibernéticas

Saulo Teles.
Presidente da Comissão das PICSB do CRODF e Secretário do GEBICI
Ola parabéns pelo blog, muito interessante, virei fã.