Hierarquizar a blogosfera

Minha fala no II EWCLiPo causou reações muito além do que eu imaginava. A Maria Guimarães do Ciência e Idéias entendeu que eu estava criticando os jornalistas. A Adriana Carvalho do Karapanã viu uma contradição (só uma?!) nas minhas idéias: "por um lado, é boa a expressão livre, mas depende de quem ou do que se fala?". Eu acho que não critiquei os jornalistas nem quis tolher o direito de alguém expressar o que pensa. Se o fiz peço desculpas em público. Nunca foi essa minha intenção.

Eu devia falar sobre anti-ciência. Falei um pouco sobre isso mas também sobre informação e poder. Sobre hierarquia e autoridade. Autoridade no sentido de credibilidade e fé pública.

Falei sobre como a civilização ocidental mudou de forma irreversível com a invenção da imprensa por Gutenberg em 1454. Antes disso os livros eram manuscritos ou impressos em quantidades muito pequenas. Isso permitia que a difusão de idéias fosse controlada pelos poderosos, em particular pela igreja. Com a imprensa o controle da difusão de idéias escapou da igreja. Quem tinha acesso a máquinas de imprimir podia editar livros e panfletos com suas idéias, independentemente da vontade dos poderosos. A imprensa foi um instrumento tão perigoso e subversivo que cem anos depois a igreja publicou o Index Librorum Prohibitorum, o qual só foi revogado 4 séculos mais tarde em 1966, 15 anos antes da bitnet.

A internet, e o aparecimento de ferramentas simples para blogs pode ter a longo prazo um efeito comparável à invenção da imprensa. Acabou o poder dos editores e donos do poder na imprensa. Qualquer pessoa com acesso à web (até eu!) pode escrever e difundir suas idéias, sua arte, sua ciência para quem quiser ouvir (ou ler). Isso tem uma conseqüência maravilhosa em termos de difusão de idéias. Mas tem também um lado sombrio. Para citar um exemplo radical, a web está cheia de blogs nazistas, racistas, homófobos, xenófobos e com todo tipo de preconceito e incitação à violência. Basta procurar que você os encontrará.

Outro aspecto da democratização radical da difusão de idéias tem a ver com qualidade. Isso vem preocupando intelectuais e artistas e deve preocupar também os que se importam com a cultura científica. Eu ouvi essa conversa pela primeira vez de artistas mais ou menos na época em que comecei meu blog. Ela materializou-se no livro O culto do amador de Andrew Keen. Ele diz que a web "É a celebração do amadorismo: qualquer um, por mais mal-informado que seja pode publicar um blog, postar um vídeo no YouTube ou alterar um verbete na Wikipedia. Esse anonimato da web põe em dúvida a confiabilidade da informação". No início de setembro o Nouvel Observateur publicou uma entrevista com Emmanuel Hoog, presidente do Institut National de l'Audiovisuel francês. Ele preocupa-se com a ausência de hierarquia para bens culturais na rede, e o consequente nivelamento por baixo da atividade cultural. Ele afirma que a hierarquização é feita pelos mecanismos de busca (Google, Yahoo, etc) e sugere, dentro de uma visão absolutamente francesa de mundo, que o governo estabeleça mecanismos de busca de qualidade. Obviamente isso não resolveria nada. Uma entrevista parecida saiu no Le Monde.

Todas as áreas do conhecimento construíram mecanismos de validação e de suporte à qualidade. Como nós não-artistas podemos decidir quais tendências em arte contemporânea podem ser relevantes? Podemos ir a um museu. Por exemplo o Museu de Artes Visuais Ruth Schneider em Passo Fundo. Com todo respeito por Passo Fundo, se você tiver possibilidade e quer saber sobre as últimas tendências seria melhor ir ao MOMA em Nova Iorque. Lá você poderá até encontrar trabalhos que talvez não entenda se não estiver muito por dentro do que acontece em arte hoje. Talvez uma instalação que consiste numa sala com o piso de madeira coberto por estopa. Você pode mexer na estopa a vontade e achar isso uma bobagem, mas é possível que isso mexa com você. Por que o MOMA tem mais prestígio que o MAVRS? Porque a sociedade atribuiu ao MOMA uma autoridade maior do que ao MAVRS.

A ciência criou toda uma sociologia própria (vou escrever especificamente sobre esse assunto em breve). Rituais, meios de divulgação, procedimentos de validação, universidades, meritocracia (que não tem nada a ver com democracia), títulos acadêmicos, revisão pelos pares, etiqueta, encontros, etc... A comunidade científica atribui à Nature mais credibilidade que ao Journal of Chiropractic Medicine. Quem trabalha com ciência conhece a diferença. A maioria das pessoas não já que os dois têm políticas de publicação seletivas, revisão por pares, etc.

A internet é o paraíso da informação de qualidade duvidosa. Ela está cheia de arte de segunda categoria posando de relevante e de blogs e discussões citando periódicos do padrão do citado JCM como se fossem sérias. Como pode o pacato cidadão entender e qualificar essas coisas? Não existe o MOMA da internet. Nem os mecanismos de validação usados pela ciência.

Eu disse claramente em Arraial do Cabo e repito aqui que não sei a resposta para essas inquietações. O bom de ser cientista é que ao contrário das culturas dogmáticas nós temos o privilégio de discutir sem saber as respostas. Sugeri um mecanismo primário de validação, copiado da sociologia da ciência, o tal selo de qualidade. Alguma autoridade científica (qual?) poderia certificar blogs com algum critério de qualidade da informação. Isso é uma espécie de revisão por pares a priori. Isso não impediria a difusão de blogs pseudo-científicos, mas eles não conseguiriam jamais o status de blogs científicos.

Estou velho demais para achar, como alguns blogueiros por aí, que com informação de qualidade as pessoas em geral (jornalistas incluídos) deixarão de se fazer enganar. Não consigo imaginar nada além de algum mecanismo hierárquico para validação de qualidade. Ou alguém tem outra idéia?

Comentários

Mauro Rebelo disse…
Leandro, seu texto está sensacional e eu concordo com você em grau, número e gênero. Acredito que esteja mais claro do que foi sua palestra no EWCLiPo. Acho que você é um cara que fala com emoção sobre ciência e, como eu também sou, acho isso ótimo. Mas as vezes isso tira a nossa clareza. Será que as coisas que eu falei antes de você sobre arte te inquietaram e afetaram a sua clareza na apresentação? Que bom então! A internet permite que continuemos nossas apresentações e discussões. O chato seria duas semanas depois ninguém estar mais falando do evento! Um abraço,
Ney Frota disse…
entendo e concordo com o que vc fala... o dificil é aparecer um controle que ganhe status coma facilidade da internet.. a minha preferencia EU SEI nao é a mesma dele e eu posso expor a minha sem atrapalhar ele (nao precisamos nos juntar pra sobreviver)... terreno arido pra surgir consenso e status

a parte cientifica é mais facil pq é logica, mais facil de metrificar. Transferencia funciona, ex: nature validar blogs cientificos.

Ja fora do mundo da logica, vai existir (e eh melhor mesmo que seja assim) o caos... no maximo, pra simplificar, organizar com base em sua rede social (a unica saida que vejo).

um exemplo bom é o last.fm ... anota o que ouco, meus amigos, faz a triangulacao entre eu, meus amigos, outras pessoas e chega perto do que quero e nao conheco. O que é in e out. Isso cria uma hierarquia MINHA (e so minha)... o que nao deixa de ser um caos de multiplas hierarquias :)

twitter e facebook estao devagar indo pra esse lado, mais pelo dinheiro (informacao -> publico -> anuncio -> dinheiro) do que pra ser util
maria disse…
leandro, a internete de fato é uma forma de difundir informação ainda mais eficiente do que as que apareceram antes. mas será?

quanta gente não usa computador mas ouve rádio, recolhe panfletos e lê jornalecos sensacionalistas?

muito antes de inventarem a internete, os xenófobos, nazistas, racistas e fanáticos de maneira geral já se manifestavam a torto e a direito por esses outros meios de comunicação. alguns deles bastante oficiais, como revistas de ampla circulação e estações de rádio brasil afora. isso continua existindo, como vai se regular essa expressão?
Rapazes,

Como diria o Monteiro Lobato, vocês me inspiraram um feto de idéia. A partir de hoje, vou fazer uma série "Cultura da Amadores" no meu blog, comentando a polêmica (muito boa, por sinal) levantada por vocês.

Leandro, seu e-mail da reitoria está com problema?

Abraços para todos.

Sonia
Mauro Rebelo disse…
Acho que consegui organizar (?) um pouco melhor minha opinião sobre o assunto. O que temos de fazer não é certificar a fonte, mas certificar o receptor!
Sibele disse…
Acho que o belo trabalho que o pessoal do LDC (Laboratório de Divulgação Científica) da USP de Ribeirão Preto faz, mapeando, monitorando e classificando blogs no Anel de Blogs Científicos é um bom caminho.
Leandro, gostei do que você escreveu aqui e lá no meu blog. Gosto de discutir sobre o assunto. E continuo acreditando que é muito complicado criar credibiliadade a partir de carimbos, para usar essa analogia. abraços.
Sibele disse…
"O que temos de fazer não é certificar a fonte, mas certificar o receptor!"

Realmente, Mauro! Educação é a resposta!

E por incrível que pareça, a mais difícil!

Fico desanimada quando vejo cenas como essa: http://bit.ly/4jaaFB...

A educação que é a resposta não é para elas mesmas, essas crianças?
Osame Kinouchi disse…
Não sei quanto aos blogs artisticos e culturais, mas acredito que no caso dos blogs cientificos estamos indo bem nessa questão da validação.

Notem a questão do premio ABC. Ganhar o premio é um selo de qualidade (embora nao ganhar não significa muita coisa, voce pode ganhar ano que vem!)

O mais interessante é que os premios nao foram dados por uma hierarquia estatal (eu, Zedy e Balu não decidimos quem ia ganhar o premio!), e também não foi democrático-ingênuo (votação popular). Foi meritocrático no sentido de ser um premio dado pelos pares, a comunidade blogueira.

É algo meio auto-referente, mas acho que funciona. Afinal, se já somos mais de 270 blogs, não podemos ser considerados apenas uma panelinha, sempre haverá vozes discordantes e amplitude de debate.

Embora, e isso é verdade, a blogosfera anti-cientifica, pseudocientifica e paracientifica ficaram de fora...
Clarissa disse…
L
eu, como você, tô velha demais prá ter ilusões de que as pessoas vão parar de acreditar em bobagens. Não há nada que se possa fazer: mais informação de qualidade, mais acesso a bens culturais, etc. Só uma minoria vai se interessar por isso. O resto quer ver programas de auditório, cair na balada, ficar horas no telefone...Pouca gente viaja e vai em museus e teatros, mas muita gente vai nos outlets e nas lojas de eletrônicos. É assim e não vai mudar.
O que a maioria das pessoas quer na internet são as social networks e as fofocas das celebridades.
Sou contra qualquer sistema de hierarquia ou autoridade na internet. Penso que é como uma biblioteca ou uma livraria, você olha os livros, pega na mão, lê a orelha. Alguns você vê que são uma porcaria, outros são médios, alguns te interessam. Internet prá mim é assim: você vai passeando por ela e vendo todo o tipo de coisas. Teu conhecimento e bom senso vão te guiando. As pessoas acabem encontrando o que querem: o crédulo acha o guru de self-help, a adolescente acha as fotos dos artistas, o cientista acha as informações que interessam.
É uma educação separar o joio do trigo; obviamente prá quem quer ser educado.
Eu entendo que a tua formação de cientista quer organizar a bagunça. Mas como organizar o caos, uma coisa que tem a mão de centenas de milhões de pessoas?
Impossível.
Tem gente que acha - e vai morrer achando - que o museu de Passo Fundo é maravilhoso. E que o MOMA é horrível.
Já discuti com um cara com doutorado, viajado, que achava que o MASP era melhor que o MOMA. Hoje em dia não discutiria. Falaria “que interessante!”. Eu, perder meu tempo com isso? Aprendi.
Let it be.
Beijo
Clarissa
Anônimo disse…
Colegas,
que boa essa discussão! Parabéns, Leandro!
Bom, não acredito na questão do selo de qualidade, acho que não é por aí, como comentei no blog da Alessandra.
Isso não significa que não preze pela qualidade da informação transmitida, seja ela científica ou não. Mas acho que em lugar de mecanismos de controle, o melhor seria tanto a questão da formação das pessoas, como o Mauro menciona, quanto mecanismos de discussão. Dois exemplos que acho muito bons são:
- o Ofcom (http://www.ofcom.org.uk/) - como eles mesmos se definem: "the independent regulator and competition authority for the UK communications industries." Um exemplo excelente da atuação do órgão foi durante o barulho do documentário "A grande farsa do aquecimento global", vcs acompanharam?;
- o Knight Science Journalism Tracker do MIT (http://ksjtracker.mit.edu/) - como eles mesmo se definem: "peer review within science journalism".
Acho que espaços de debate como esses sobre a forma como a informação é transmitida, uma reflexão sobre os acertos e erros, exageros e lacunas etc é que podem ajudar a melhorar a prática da divulgação.
Caros,
Cuidado. Ninguém está falando em censurar a web ou impedir que alguém manifeste suas idéias ou opiniões como alguns estão entendendo. Por outro lado acho um pouco ingênuo acharmos que educando as pessoas o problema está resolvido. Isso seria no mínimo utópico.
Eu cada vez mais gosto da idéia de aproveitarmos algumas das idéias do peer review, como foi sugerido de diferentes formas em alguns comentários. Como fazer isso avançar?
João Carlos disse…
Eu acredito que está havendo com a Internet o mesmo que aconteceu com relação à bomba atômica: a vastidão do efeito imediato está estarrecendo demais e estão se esquecendo de que guerras em geral causam mortes e destruição.

Falsas informações, asneiras de todos os tipos, superficialidades momentosas, tudo isso sempre esteve presente nos meios de comunicação de massa e todas as tentativas de "regulamentar" a coisa acabaram sendo emendas piores que o soneto.

Como o público vai aprender a distinguir a informação confiável da não-confiável?... Resposta simples: não vai! Como sempre, vai se valer do "argumento de autoridade" (como o ABC, por exemplo) quando e se estiver interessado em procurar informações confiáveis.

Porém – na Internet como na vida, em geral – as pessoas vão procurar fontes que digam as coisas que mais se aproximem de seus próprios preconceitos.
Osame Kinouchi disse…
Um artigo sobre algoritmo para "validacao" e "qualificação" (censura e controle pelo estado) de blogs em Bangladesh...

http://arxiv.org/abs/1006.4542

Devemos adaptar ao Brasil?