Neymar e a educação pública fundamental

Favoráveis ou contrários à realização da Copa das Confederações, temos todos assistido maravilhados a performance do Neymar e também de outros jogadores talentosos na seleção brasileira. Maravilhados e um pouco enciumados, pelo menos a parte da população do sexo masculino. Por mais satisfeitos com a vida que estejamos, temos uma justificada inveja da genialidade dele no campo. E ninguém pode argumentar que não está no lugar dele por falta de oportunidade. O segredo do sucesso do Brasil no futebol está talvez num dos mais eficientes sistemas de caça a talentos do mundo. Todos nós que não seguimos a carreira futebolística só podemos atribuir isso a um único fator: falta de talento. Jamais falta de oportunidade. Qualquer menino (hoje em dia também menina) minimamente talentoso é logo reconhecido pelo sistema e recrutado para aprimorar sua habilidade através de treinamento adequado. Nos últimos anos esse sistema foi adotado também por outros esportes coletivos (em particular vôlei) com resultados igualmente positivos. Por razões que não vou discutir agora, o método não é tão eficaz para esportes individuais como atletismo ou tênis.

Quando minhas filhas ainda estavam em idade escolar nós passávamos todo dia de carro por uma escola pública que ficava a 3 quadras de onde morávamos, a caminho da escola particular onde elas estudavam. Eu via as crianças chegando a pé de todos os lados, com um colorido muito mais vibrante do que elas poderiam ter acesso na sua escola, que era frequentada por filhos de profissionais de nível universitário e professores. Famílias não muito diversas da minha. Eu me perguntava por que elas precisavam frequentar uma escola (bem) paga, muito mais longe e menos diversa.
Semana passada estive em Londres a convite do British Council como parte de uma delegação em um encontro para discutir as possibilidades do ensino de inglês no Brasil. Um dos pontos altos da programação para mim foi a visita à Stockwell Primary School, uma escola pública em um bairro pobre londrino. No almoço (excelente, com frutas e sorvete na sobremesa) adorei conversar com Chanel, menininha linda de uns 8 anos, filha de imigrantes jamaicanos que achava que falamos espanhol no Brasil. Algumas coisas me chamaram a atenção já na chegada: a absoluta disciplina das crianças, que se deslocam dentro da escola sempre em grupo e em filas organizadas, o carinho e respeito com que tratam os professores, o estúdio para atividades musicais. Depois do almoço fomos brindados por um grupo de uns 15 instrumentistas e cantores interpretando Billy Jean com o professor na bateria num arranjo incluindo diálogos entre trompetes e flautas-doces. Havia também um espaço para atividades artísticas/lúdicas onde vários grupos trabalhavam ao mesmo tempo lado a lado.
O estúdio da escola.
Conversando com dirigentes aprendemos fatos surpreendentes: naquela escola há crianças que falam em casa uma de 37 línguas diferentes. Seguem religiões diferentes (os véus islâmicos em meninas de 10 anos não deixam de chamar a atenção), têm cores diferentes (foi difícil convencer uma filha de chineses que minha colega brasileira de origem japonesa era brasileira), caras diferentes, poderes aquisitivos diferentes e recebem a mesma educação de qualidade. Não existe o conceito de reprovação: apesar de a relação entre professores e estudantes ser claramente de poder nenhum estudante vive sob a ameaça de não continuar seus estudos com seu grupo de amigos e colegas no ano seguinte porque falhou em algum teste ou porque algum professor assim decidiu.
Se no meio dessas crianças estiver alguém talentoso para a ciência como o Neymar é para o futebol não tenho a menor dúvida que ele ou ela terá todas as oportunidades que precisa para ser educado adequadamente e seguir uma carreira científica. Os demais terão tido o privilégio de terem sido educados em um ambiente de diversidade onde terão aprendido cidadania através do afeto e da convivência com pessoas muito diferentes do que encontram em casa ou entre seu grupo social imediato.
Estamos errando historicamente no Brasil por não darmos a devida atenção à educação desde os primeiros anos de vida e por acharmos que mantendo um apartheid educacional temos alguma chance de avançar como nação. Além do óbvio contraste na infraestrutura, a principal razão que me levou a investir uma parte importante do que ganho na educação privada das minhas foi o preparo e atitude dos professores. Sem pagar salários competitivos e prestigiar os bons profissionais é difícil atrair professores de qualidade. Na Coréia do Sul o salário inicial de um professor primário é maior que o de um professor universitário. Adivinhe se lá licenciaturas são carreiras concorridas. Nos processos seletivos das universidades brasileiras estão entre os cursos menos concorridos.
Ao contrário dos países latinos, na Inglaterra as escolas primárias públicas são autônomas para atrair os melhores professores (como fazem as particulares por aqui). Como consequência eles têm um dos melhores e mais inclusivos sistemas de ensino fundamental do mundo. Na escola em que estivemos todos os professores têm pelo menos meio dia (alguns têm um dia inteiro) por semana para se atualizarem e aprimorarem continuamente.
Infraestrutura conta. Ter instalações adequadas, salas bem arrumadas e limpas, banheiros em boas condições. Não se pode desprezar uma boa biblioteca, instrumentos musicais em um estúdio como na foto, instalações esportivas. A comida oferecida aos estudantes (todos ficam na escola em tempo integral) precisa ser de boa qualidade.
Quando se tentou implantar progressão continuada por nossas bandas esqueceram de preparar os professores para isso. O resultado foi um fracasso a ponto de políticos terem usado como propaganda eleitoral a volta à reprovação indiscriminada, como se assim a qualidade da educação aumentasse.
Não tem cota no ensino superior capaz de recuperar completamente talentos perdidos por não terem tido uma formação básica inadequada. Não dá para tentar fazer um jogador talentoso que ficou muitos anos sem jogar e não foi treinado brilhar na seleção. Simplesmente não funciona. Não é por acaso que a performance da educação brasileira no PISA, a copa do mundo da educação básica, é tão ruim.

O Brasil está nas ruas buscando mudanças, mesmo sem saber muito claramente quais. Meu palpite por um país melhor: Educação básica pública de qualidade melhor que o sistema privado tem a oferecer. Essa é a situação do ensino superior. Porque não podemos fazer melhor no ensino básico?

Não podemos nos dar ao luxo de deixar escapar o Neymar da biologia, do meio ambiente, da física, da matemática, da engenharia, da filosofia, da arte, da literatura... 

Comentários

none disse…
Na verdade o sistema de olheiro e peneira do futebol nacional não é tão eficiente assim.

Há inúmeras histórias de jogadores agora reconhecidos que foram reprovados em sucessivas peneiras e chegaram a pensar em desistir.

Além disso, é um sistema bastante desigual: atualmente são mais de 100 mil atletas do futebol. Menos de 1/3 são profissionalizados. Destes, menos de 1/5 recebem mais de dois salários mínimos.

http://extra.globo.com/esporte/triste-realidade-no-brasil-82-dos-jogadores-de-futebol-recebem-ate-dois-salarios-minimos-6168754.html
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Compare-se com os dados do PNAD 2011. 20% recebiam 2 SM ou mais.

Se o sistema educacional no Brasil é ruim, o sistema futebol no Brasil não é melhor.

[]s,

Roberto Takata
Caro Takata,
Mesmo um sistema de recrutamento eficiente pode levar a uma situação muito desigual. Isso ocorre sempre que a pirâmide salarial é muito íngreme mas as pessoas ainda assim se submetem ao trabalho na esperança de um dia chegarem ao topo. O melhor exemplo que eu consigo lembrar é o dos traficantes, estudados pelo ótimo Freakonomics, com a sugestiva pergunta Por quê os traficantes vivem com suas mães?
O sistema de ensino público fundamental no Brasil é ruim. O de futebol pelo menos consegue identificar talentos e investir neles.

Um abraço.
none disse…
Tessler,

O sistema educacional detecta e investe em talentos tanto quanto o sistema de futebol.

No educacional, USP, Unicamp e outras públicas peneiram os bons. Do mesmo modo que Corinthians, Flamengo e outros grandes.

Mas a eficiência é baixa porque não tem lugar para todos os que são bons. E nem há garantias de que os melhores têm lugar garantido.

[]s,

Roberto Takata
Este comentário foi removido pelo autor.
Sou ruim de Blogger! Eu queria editar uma palavra no comentário e acabei removendo sem volta!

Só qwueria dizer que não concordo com o que o Takata afirma. Nenhum país do mundo tem instituições com o perfil da USP para todos os concluintes do ensino médio. Países mais desenvolvidos oferecem oportunidades distintas para pessoas distintas, mas não desperdiçam pessoas talentosas. Quando os jovens chegam aos 17-18 anos, a idade em que entram no ensino superior no Brasil a verdadeira exclusão já aconteceu. Os talentos já se perderam. Basta olhar para os percentuais de candidatos de escolas públicas no ingresso às universidades públicas. No futebol isso não acontece.
Anônimo disse…
Bom texto! Bela a analogia! um sistema com condições de encontrar talentos no futebol é algo que pode trazer retornos financeiros em escalas astronômicas. É algo que be neficia a grupos, a poucos...Aplicar esse sistema ao ensino o público seria fantástico...mas qual benefício isso traria para quem quer se manter no poder? Para os jurássicos velhos e múmias que estão em Brasília isso não seria bom...a mudanca no sistema educacional passa por uma mudança profunda em todo a administração pública a..nas instituições.. Nos professores..e no brasileiro em geral. Poucos vêem a educação como meio transformador...será que temos ossalvacao?