É comum ultimamente ouvirmos afirmações do tipo "há uma crise na academia" a respeito de determinado assunto. Como é possível saber se essa crise ocorre na comunidade científica acadêmica ou na academia de ginástica frequentada por quem faz a afirmação e sua imaginação?
Para entender isso é preciso antes descobrir como a comunidade científica estabelece o senso comum sobre nossa compreensão do universo que nos cerca.
Há centenas de anos alguns rituais e procedimentos consensuais se estabeleceram para determinar se realmente as ideias correspondem aos fatos ou são pura imaginação.
Um dos processos mais respeitados e aceitos por todos é a revisão por pares. Ele consiste em
submeter as comunicações científicas a pessoas com largo e estabelecido conhecimento na área para verificarem se o artigo representa de alguma forma um avanço ou uma contribuição relevante.
As revistas mais rigorosas e prestigiosas lançam mão de dois ou três revisores para anonimamente opinarem sobre os artigos submetidos. A aceitação para publicação depende de pareceres positivos dos revisores. O prestígio acadêmico de publicações como Nature ou Science é resultado do rigor e da seriedade de seu processo de revisão.
Não esqueço do orgulho que me tomou quando fui convidado pela primeira vez para ser revisor de um periódico importante. Foi há quase 30 anos no Applied Physics Letters. Para mim significava ser reconhecido como alguém de confiança para ajudar a decidir o que deve e o que não deve ser publicado na minha área. Depois disso me tornei revisor de outros periódicos. Essa é a trajetória normal de cientistas com produção de artigos minimamente relevante. Isso foi em tempos pré-internet, em que o acesso a artigos ocorria unicamente através de periódicos impressos que ficavam na biblioteca. Só era possível ler artigos que tinham passado pelo processo de revisão.
A internet abriu possibilidades nunca antes imaginadas para o acesso à informação. Eu já comentei isso anteriormente. A internet permite que qualquer pessoa difunda suas ideias, produção artística, científica ou literária sem depender de cair nas graças de um editor ou ter seu artigo revisado por pares. A internet subverte o processo de revisão por pares..
Isso tem vantagens e desvantagens. A desvantagem mais óbvia é a exatamente a mesma que a vantagem: qualquer um pode se dizer artista, escritor ou cientista e divulgar sua produção sem passar por revisão alguma. Pseudocientistas abundam, com sites bem organizados e com aspecto respeitoso. Basta mandar seu artigo para o ArXiv, um impressionante repositório de um milhão de artigos não revisados mantido pela Universidade Cornell. Originalmente a ideia era permitir acesso rápido aos artigos durante o processo de revisão.
No entanto, os periódicos com revisão por pares continuam conferindo prestígio aos artigos neles publicados e são a referência quando falamos da comunidade acadêmica.
Nos últimos anos vem acontecendo uma explosão dos chamados periódicos de acesso livre. Alguns ganharam rapidamente uma reputação invejável por sua seriedade, dinamismo e obviamente o acesso livre. Esse é o caso por exemplo do PLOS One.
A tradução corresponde a:
Para entender isso é preciso antes descobrir como a comunidade científica estabelece o senso comum sobre nossa compreensão do universo que nos cerca.
Há centenas de anos alguns rituais e procedimentos consensuais se estabeleceram para determinar se realmente as ideias correspondem aos fatos ou são pura imaginação.
Um dos processos mais respeitados e aceitos por todos é a revisão por pares. Ele consiste em
submeter as comunicações científicas a pessoas com largo e estabelecido conhecimento na área para verificarem se o artigo representa de alguma forma um avanço ou uma contribuição relevante.
As revistas mais rigorosas e prestigiosas lançam mão de dois ou três revisores para anonimamente opinarem sobre os artigos submetidos. A aceitação para publicação depende de pareceres positivos dos revisores. O prestígio acadêmico de publicações como Nature ou Science é resultado do rigor e da seriedade de seu processo de revisão.
Não esqueço do orgulho que me tomou quando fui convidado pela primeira vez para ser revisor de um periódico importante. Foi há quase 30 anos no Applied Physics Letters. Para mim significava ser reconhecido como alguém de confiança para ajudar a decidir o que deve e o que não deve ser publicado na minha área. Depois disso me tornei revisor de outros periódicos. Essa é a trajetória normal de cientistas com produção de artigos minimamente relevante. Isso foi em tempos pré-internet, em que o acesso a artigos ocorria unicamente através de periódicos impressos que ficavam na biblioteca. Só era possível ler artigos que tinham passado pelo processo de revisão.
A internet abriu possibilidades nunca antes imaginadas para o acesso à informação. Eu já comentei isso anteriormente. A internet permite que qualquer pessoa difunda suas ideias, produção artística, científica ou literária sem depender de cair nas graças de um editor ou ter seu artigo revisado por pares. A internet subverte o processo de revisão por pares..
Isso tem vantagens e desvantagens. A desvantagem mais óbvia é a exatamente a mesma que a vantagem: qualquer um pode se dizer artista, escritor ou cientista e divulgar sua produção sem passar por revisão alguma. Pseudocientistas abundam, com sites bem organizados e com aspecto respeitoso. Basta mandar seu artigo para o ArXiv, um impressionante repositório de um milhão de artigos não revisados mantido pela Universidade Cornell. Originalmente a ideia era permitir acesso rápido aos artigos durante o processo de revisão.
No entanto, os periódicos com revisão por pares continuam conferindo prestígio aos artigos neles publicados e são a referência quando falamos da comunidade acadêmica.
Nos últimos anos vem acontecendo uma explosão dos chamados periódicos de acesso livre. Alguns ganharam rapidamente uma reputação invejável por sua seriedade, dinamismo e obviamente o acesso livre. Esse é o caso por exemplo do PLOS One.
Mas como a internet é livre da noite para o dia surgem periódicos nada sérios. Eles podem ter fins lucrativos, apresentando um processo de revisão por pares absolutamente frouxo ou não existente para que qualquer bizarrice seja aceita mediante uma módica contribuição por parte do autor. é o equivalente a autores de livros que pagam a edição impressa de suas obras medíocres. Esses são chamados apropriadamente de editores predatórios. A outra vertente, com uma agenda política e sme sem fins lucrativos, se dedica a publicar ideias pseudocientíficas e contrárias ao que a comunidade acadêmica aceita como ciência.
Recentemente recebi a mensagem que reproduzo a seguir:
De: ASCITNews
Para: tessler
Dear Tessler, L.R. ,
AASCIT is seeking individuals with diverse areas of expertise to serve as peer reviewers or editorial board members to evaluate papers submitted to AASCIT journals. The peer review process used by AASCIT enhances the efficiency and maximizes the quality of the paper.
After reading your article Structural characterization of ZnO/ Er2O3 core/shell nanowires published in Superlattices and Microstructures, our Editorial Board speak highly of it and think you are qualified to be a Reviewer or Editorial Board Member in our journals to review papers.Now, we sincerely invite you to join us serving as a journal Reviewer or Editorial Board Member and you will get below benefits:
1. Publish your own papers with certain discounts in our journals.
2. Enriching your knowledge and broadening your horizon by reading others’ papers.
3. Get a certificate.
A reviewer's responsibilities include reviewing manuscripts for clarity, accuracy, and research rigor; identifying the strengths and weaknesses of manuscripts and so on. For more details, you can visit: http://www.aascit.org/journals/callforeditorial
You can also visit our journal page to check the journals in which you are interested. If you are interested in becoming a Reviewer or Editorial Board Member, please submit your application through our online system: http://www.aascit.org/common/login
We are looking forward to your participation.
A tradução corresponde a:
Caro Tessler, L.R. ,Essa mensagem me chamou a atenção por alguns motivos:
AASCIT está à procura de indivíduos de diversas áreas de especialização para atuar como revisores ou membros do conselho editorial para avaliar os artigos submetidos aos periódicos da AASCIT. O processo de revisão por pares usado por AASCIT aumenta a eficiência e maximiza a qualidade do artigo.
Depois de ler o seu artigo Structural characterization of ZnO/ Er2O3 core/shell nanowires publicado em Superlattices and Microstructures, nosso Conselho Editorial tem falado muito bem dele, o que qualifica você para ser um revisor ou Membro do Conselho Editorial em nossas revistas para avaliar artigos. Então sinceramente convidamos você a se juntar a nós atuando como revisor ou como membro do Conselho Editorial e você terá benefícios abaixo:
1. publicar seus próprios artigos com descontos em nossas revistas.2. Enriquecer seu conhecimento e ampliar seu horizonte, lendo artigos de outros autores.3. Obter um certificado.As responsabilidades de um revisor incluem a revisão dos manuscritos para clareza, precisão e rigor na pesquisa; identificar os pontos fortes e fracos de manuscritos e assim por diante. Para mais detalhes visite: http://www.aascit.org/journals/callforeditorial
Você também pode visitar a nossa página para verificar as revistas em que você está interessado. Caso você se interesse em se tornar um Revisor ou Membro do Conselho Editorial, por favor, envie seu pedido através do nosso sistema on-line: http://www.aascit.org/common/login
Contamos com a sua participação.
1) O artigo mencionado é um artigo de congresso, com poucas citações na literatura. Não é exatamente o que qualifica um revisor num periódico sério. Eles pelo menos podiam escolher um artigo mais citado para tentar massagear meu ego.
2) Eles me convidam não só para ser revisor de algum periódico, mas também para participar do Conselho Editorial. Nos periódicos sérios isso é restrito a verdadeiros experts. Mais uma tentativa de massagear meu ego.
3) Eles oferecem vantagens para ser revisor e um certificado. Bom, para o Brasil onde exigem certificado de tudo isso é maravilhoso. Imagine o prestígio que vou ganhar com o certificado de revisor emoldurado na minha sala!
4) Eu nunca tinha ouvido falar dessa AASCIT (para mim ascite é barriga d'água).
Lá fui eu buscar saber do que se trata a AASCIT. Ela tem um site que parece sério. No entanto uma busca no Google mostra que ela está na lista de editores predatórios Beall's List, na Scientific Scam, e o melhor de tudo, seu site fica na Tailândia e é classificado como de risco, apesar de AASCIT significar Associação Americana (e não tailandesa) de Ciência e Tecnologia.
Ou seja, melhor ficar longe disso.
Agora além de nos preocuparmos com pseudociência precisamos também nos preocupar com pseudoeditoras e pseudoperiódicos.
Há vários exemplos de artigos falsos que foram enviados para testar o sistema de pseudorevisão por pares de pseudoperiódicos com fins lucrativos. O mais engraçado talvez seja o de David Mazières e Eddie Kohler, que submeteram um artigo chamado "Tirem me da merda da sua lista de mail" no International Journal of Advanced Computer Technology. O texto todo do artigo consiste nas palavras Get me off your fucking mail list repetidas ad nauseam. O artigo foi aceito com relatórios muito positivos dos revisores.
Há também os pseudoperiódicos com uma agenda definida, para dar roupagem científica à pseudociência. Aqui no Brasil temos o International Journal of High Dilution Research, que se dedica a divulgar a pseudociência que "valida" a homeopatia. Uma rápida olhada no tipo de artigo ali publicado dá uma boa ideia do que se trata. O pseudocientífico Life, "uma revista internacional de acesso livre, revisada por pares de estudos científicos relacionados a temas fundamentais nas Ciências da Vida, especialmente aquelas relativas às origens da vida e evolução de biosistemas" ficou famoso por artigos que não passariam em lugar algum minimamente sério. Num deles, com o pomposo título Teoria das Origens, Evolução e Natureza da Vida o autor faz um impressionante jogo de palavras sem sentido de mais de 100 páginas, rapidamente analisado por PZ Myers. Outro, "Seria a vida especial?" é realmente especial. Começando pelo endereço que autor apresenta: Department of ProtoBioCybernetics and ProtoBioSemiotics, Origin of Life Science Foundation, Inc., 113-120 Hedgewood Drive, Greenbelt, MD 20770, USA. Como mostrado pelo mesmo PZ Myers, não só essa instituição não existe como o endereço corresponde à casa do autor, David L. Abel.
O próprio Discovery Institute, bastião americano da pseudociência conhecida como Intelligent Design, reconhece a importância da revisão por pares e disponibiliza uma lista de artigos aceitos supostamente com revisão por pares. A lista inteira foi refutada, artigo por artigo. Desnecessário dizer que pseudociência não passa por revisão por pares séria.
Como saber se realmente há uma crise na academia em relação a determinado assunto? Fácil: busque a informação onde a academia busca: periódicos sérios revisados por pares, não pelos ímpares que estão por aí confundindo a academia de verdade com a academia de ginástica.
Exercício: procure nos periódicos sérios se há alguma dúvida a respeito do processo de seleção natural, ou da evolução.
2) Eles me convidam não só para ser revisor de algum periódico, mas também para participar do Conselho Editorial. Nos periódicos sérios isso é restrito a verdadeiros experts. Mais uma tentativa de massagear meu ego.
3) Eles oferecem vantagens para ser revisor e um certificado. Bom, para o Brasil onde exigem certificado de tudo isso é maravilhoso. Imagine o prestígio que vou ganhar com o certificado de revisor emoldurado na minha sala!
4) Eu nunca tinha ouvido falar dessa AASCIT (para mim ascite é barriga d'água).
Lá fui eu buscar saber do que se trata a AASCIT. Ela tem um site que parece sério. No entanto uma busca no Google mostra que ela está na lista de editores predatórios Beall's List, na Scientific Scam, e o melhor de tudo, seu site fica na Tailândia e é classificado como de risco, apesar de AASCIT significar Associação Americana (e não tailandesa) de Ciência e Tecnologia.
Ou seja, melhor ficar longe disso.
Agora além de nos preocuparmos com pseudociência precisamos também nos preocupar com pseudoeditoras e pseudoperiódicos.
Há vários exemplos de artigos falsos que foram enviados para testar o sistema de pseudorevisão por pares de pseudoperiódicos com fins lucrativos. O mais engraçado talvez seja o de David Mazières e Eddie Kohler, que submeteram um artigo chamado "Tirem me da merda da sua lista de mail" no International Journal of Advanced Computer Technology. O texto todo do artigo consiste nas palavras Get me off your fucking mail list repetidas ad nauseam. O artigo foi aceito com relatórios muito positivos dos revisores.
Há também os pseudoperiódicos com uma agenda definida, para dar roupagem científica à pseudociência. Aqui no Brasil temos o International Journal of High Dilution Research, que se dedica a divulgar a pseudociência que "valida" a homeopatia. Uma rápida olhada no tipo de artigo ali publicado dá uma boa ideia do que se trata. O pseudocientífico Life, "uma revista internacional de acesso livre, revisada por pares de estudos científicos relacionados a temas fundamentais nas Ciências da Vida, especialmente aquelas relativas às origens da vida e evolução de biosistemas" ficou famoso por artigos que não passariam em lugar algum minimamente sério. Num deles, com o pomposo título Teoria das Origens, Evolução e Natureza da Vida o autor faz um impressionante jogo de palavras sem sentido de mais de 100 páginas, rapidamente analisado por PZ Myers. Outro, "Seria a vida especial?" é realmente especial. Começando pelo endereço que autor apresenta: Department of ProtoBioCybernetics and ProtoBioSemiotics, Origin of Life Science Foundation, Inc., 113-120 Hedgewood Drive, Greenbelt, MD 20770, USA. Como mostrado pelo mesmo PZ Myers, não só essa instituição não existe como o endereço corresponde à casa do autor, David L. Abel.
O próprio Discovery Institute, bastião americano da pseudociência conhecida como Intelligent Design, reconhece a importância da revisão por pares e disponibiliza uma lista de artigos aceitos supostamente com revisão por pares. A lista inteira foi refutada, artigo por artigo. Desnecessário dizer que pseudociência não passa por revisão por pares séria.
Como saber se realmente há uma crise na academia em relação a determinado assunto? Fácil: busque a informação onde a academia busca: periódicos sérios revisados por pares, não pelos ímpares que estão por aí confundindo a academia de verdade com a academia de ginástica.
Exercício: procure nos periódicos sérios se há alguma dúvida a respeito do processo de seleção natural, ou da evolução.
Comentários
Muito oportuno e obrigatório nesses tempos 'bicudos' em que o pseudo-cientificismo grassa na mídia inconsequente e ameaça a toda a sociedade através de ações obtusas de parlamentares oportunistas que trazem à tona projetos de leis que buscam impor a visão míope das crenças religiosas aos parâmetros educacionais.
Bom dia Leandro. Você sabe se já houve por aqui alguma pesquisa deste tipo? http://www.washingtonpost.com/blogs/monkey-cage/wp/2015/02/24/why-science-teachers-sow-doubt-about-evolution-even-when-they-dont-mean-to/
Nunca ouvi falar de um trabalho desse tipo no Brasil. Na verdade eu mesmo só fui entender mesmo evolução anos depois de formado na universidade. Minhas professoras de biologia no ensino médio provavelmente tinham uma compreensão limitada do processo, especialmente das mutações. Era como se fosse um processo dirigido por necessidade.
Como sou muito pessimista, ouso achar que mesmo atualmente a maioria dos professores no ensino médio ensina evolução sem entender as sutilezas do processo todo.
Um abraço, e continue atento!