Olavo e a Relatividade

Em cada época da história há pessoas na vanguarda da compreensão da vida, do universo e tudo mais. Chamamos essas pessoas de filósofos. A palavra filósofo vem do grego φιλόσοφος, ou amante da sabedoria. Filósofos importantes influenciaram e mesmo determinaram como a sociedade se organizou, a moral, a ética, de onde viemos e para onde vamos. Obviamente a invenção do pensamento científico contemporâneo, que começou na Europa renascentista do século XVI, teve forte influência na filosofia. Isaac Newton chamou seu tratado sobre a natureza em três volumes de Philosophiæ Naturalis Principia Mathematica (Princípios Matemáticos da Filosofia Natural). Nessa obra colossal é descrito o modelo que usamos até hoje para descrever o movimento de corpos materiais, a gravitação, o movimento de planetas. Ele sistematiza a noção de campos, e de quebra descreve o cálculo infinitesimal. No volume 3 Newton propõe "Regras de Raciocínio em Filosofia" em que enuncia algumas bases do raciocínio científico: efeitos similares devem ter causas similares (universalidade das leis da Física) e a compreensão da realidade deve derivar de fenômenos observados experimentalmente. Isso atualmente pode parecer óbvio, mas no século XVII não era.

O Brasil de 2019 está passando por um fenômeno muito curioso. Membros importantes do governo recém empossado (incluindo o presidente) têm citado como referência intelectual o senhor Olavo de Carvalho. Mesmo sem ter tido educação formal na área, o Sr. Carvalho se apresenta como filósofo e mantém uma página na qual oferece cursos on line sobre diversos assuntos ligados à filosofia.


Mas o que faz de um pacato cidadão um filósofo? Difícil de saber. Certamente não é um curso de graduação em Filosofia. Minha mãe era formada em Filosofia e nem por isso ficava filosofando ou falando dos mistérios da vida, do universo e tudo mais. O Sr. Carvalho é autor de uma longa lista de livros sobre os mais diversos assuntos. No entanto, ele não é reconhecido pelos pares ou pelo mundo acadêmico como alguém com algo relevante a dizer sobre a vida, o universo e tudo mais, como pode ser verificado aqui, aqui e aqui.


O Sr. Carvalho costuma publicar vídeos em seu canal no Youtube nos quais fala sobre os mais diversos assuntos, inclusive Ciência. Vou comentar um dos seus vídeos, no qual o Sr. Carvalho aplica seu bom senso ao movimento da terra em torno do sol.


"Com relação à origem da relatividade o que aconteceu foi o seguinte: no fim do século passado [houve] uma dupla de cientistas, Michelson e Morley, que disseram o seguinte: se de fato a terra se move em volta do sol então devem haver diferenças na velocidade da luz em vários pontos da terra conforme as várias estações do ano. Eles mediram isso milhares, milhares e milhares de vezes e viram que não mudava nada. Então das duas uma: ou a terra não se move ou então é preciso modificar a Física inteira. Um cidadão chamado Albert Einstein viu isso e decidiu que era preferível modificar a Física inteira só para não admitir que não havia provas do heliocentrismo. Ele fez então um arranjo que implicava em várias noções muito estranhas como a curvatura do espaço que é um conceito que até hoje eu não entendi. [...] Mais ainda a noção de que pessoas que viajassem através do espaço teriam várias idades ao mesmo tempo, e muitas coisas muito esquisitas que nunca foram provadas, mas que eram intelectualmente muito elegantes e de algum modo salvavam as aparências. O fato é que no confronto entre geocentrismo e heliocentrismo não existe nenhuma prova definitiva nem de um lado nem do outro. Você pode usar um sistema de referência ou pode usar o outro."
Citando a frase atribuída ao genial Wolfgang Pauli, isso é tão absurdo que nem chega a estar errado.

Como demonstraremos a seguir, o Sr. Carvalho mostra ter pouca familiaridade com o Método Científico, com a História da Ciência e com a própria Teoria da Relatividade.

Ao contrário do que o Sr. Carvalho afirma, os experimentos de Michelson-Morley, realizados entre 1871 e 1878, não estavam testando se a terra se move ou não. Isso já havia sido estabelecido sem sombra de dúvidas por Nicolau Copérnico 400 anos antes. Michelson e Morley estavam testando a hipótese de existir um meio (chamado de éter) para a propagação das ondas eletromagnéticas. Naquela época muitos cientistas pensavam que assim como ondas materiais (som por exemplo) só se propagam em meios materiais, deveria haver um meio de propagação para as ondas eletromagnéticas. Michelson e Morley projetaram um interferômetro extremamente sensível para detectar variações mínimas na velocidade da luz. Eles apontaram seu equipamento em diferentes direções, buscando variações na velocidade da luz, o que deveria ocorrer devido ao movimento da terra caso o éter existisse. Michelson e Morley determinaram que a velocidade da luz era sempre a mesma, não importando a direção na qual orientavam o seu interferômetro. Isso não só descartou a hipótese do éter mas também criou um novo desafio teórico: como pode a velocidade da luz ser a mesma em todas as direções dado que a terra está se movendo? A resposta veio a partir dos trabalhos de Fitzgerald e Lorentz (1892). Eles propuseram que por algum motivo uma mudança de sistema de referência no contexto do eletromagnetismo  (transformação de Lorentz) é diferente do que ocorre no contexto da mecânica (transformação de Galileu), mais intuitiva porque mais próxima de nossa experiência cotidiana. Em 1905 Albert Einstein formulou a Teoria da Relatividade Restrita na qual unificou os resultados da mecânica e do eletromagnetismo postulando que a velocidade da luz é constante em qualquer sistema de referência chamado de inercial. Portanto, apesar de a transformação de Lorenz ser a maneira correta para tratae de mudanças de sistemas de referência, a transformação de Galileu pode ser usada quando o movimento relativo dos sistemas de referência ocorre a velocidades baixas comparadas com a da luz que é de cerca de 300 mil km/s, muito maior do que estamos acostumados a experimentar em nosso dia-a-dia.

Isso tudo não tem nada a ver com a curvatura do espaço (que o Sr. Carvalho confessa não entender, e é um assunto muito difícil mesmo para quem estudou geometria avançada), que é um conceito que aparece na Teoria Geral da Relatividade.

Ao formular as teorias da relatividade restrita e geral, Einstein não estava tentando resolver o problema do movimento da terra, mas sim o problema da invariância da velocidade da luz em mudanças de sistemas de referência. Isso é provavelmente demais para o entendimento de Ciência do Sr. Carvalho, a quem resta aplicar o seu senso comum e interpretar o experimento de Michelson-Morley como evidência para a terra não se mover.

Mas afinal como sabemos que a terra gira em torno do sol (modelo heliocêntrico) e não o sol gira em torno da terra (modelo geocêntrico)? Na verdade, isso ocorre porque supondo o sol no centro do movimento de todos os planetas a descrição desses movimentos fica muito mais simples e compatível com a teoria da gravitação exposta nos Principia. Isso é a essência da Ciência: fazer modelos que nos ajudam a compreender a Natureza.
Com a invenção do telescópio no século XVI uma enxurrada de evidências astronômicas foi produzida:

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APOD/Tunç Tezel/NASA
Movimentos retrógrados dos planetas. Vistos da terra, os planetas executam trajetórias estranhas no céu, como o movimento de Marte reproduzido ao lado. Isso foi observado já no século XVI e foi um dos principais argumentos usados por Copérnico para propor o modelo heliocêntrico. O ajuste preciso das trajetórias só foi possível quando Johannes Kepler propôs que os planetas percorrem trajetórias elípticas e não estritamente circulares em torno do sol.


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As fases de Vênus. Vênus apresenta tem fases semelhantes às da Lua. Isso não tem explicação num modelo geocêntrico mas é consequência direta do modelo heliocêntrico.



As estações do ano. É muito difícil explicar porque ocorrem as estações do ano num modelo geocêntrico. No modelo heliocêntrico basta considerar que o eixo de rotação de terra está inclinado em relação ao plano da órbita em torno do sol. Essa inclinação é de cerca de 23° (é por isso que o trópico de Capricórnio passa bem pertinho de Campinas, que tem latitude 23°). A própria ocorrência de anos é consequência da rotação da terra em volta do sol.

O heliocentrismo foi adotado como a descrição correta do sistema solar porque seus resultados são passíveis de explicação por uma teoria simples e elegante, capaz de fazer previsões sobre a evolução do sistema. Essa é a base da Ciência. Por isso as escolas ensinam heliocentrismo, não geocentrismo. A fala o Sr. Carvalho só mostra o quanto suas ideias sobre Física, heliocentrismo, relatividade e tudo o mais são baseadas apenas no senso comum e não na erudição e entendimento de conceitos como ele quer que acreditemos. Na verdade isso só convence outras pessoas que também não entendem o assunto. O grave é que o Sr. Carvalho tem não só admiradores mas seguidores que tomam suas palavras como uma expressão da verdade. Assim nascem as pseudociências. Ao falar de Ciência o Sr. Carvalho certamente não se qualifica enquanto filósofo, mas simplesmente como articulador de senso comum óbvio e errado, prática comum entre os gurus de auto-ajuda. Ele no fundo não entende do que fala, usando fatos, resultados e conceitos fora de contexto e chegando a conclusões pretensamente científicas. Isso se chama pseudociência.

Pobre do país em que o guru intelectual dos governantes, com poderes suficientes para indicar dois ministros (inclusive o da Educação) seja tão superficial e tacanho.

Comentários

Anônimo disse…
É pior do que superficial e tacanho. É mau caráter mesmo.
Anônimo disse…
Excelente trabalho! Totalmente referenciado na Wikipedia ... O nível desses professores da unicamp só piora ...
Leandro disse…
Caro Anônimo,
Obrigado pelo comentário.
Por favor indique as referências mais profundas que você tem sobre o assunto e será um prazer incluí-las.
Abraço!
Anônimo disse…
Já ouvi dizer que Einstein aparentemente não conhecia o experimento de Michelson e Morley quando formulou a Relatividade Restrita. Isso procede?
Caro Anônimo,
Obrigado por seu comentário. Tudo indica que Einstein sabia do experimento de Michelson-Morley quando formulou a Teoria da Relatividade Restrita. Isso ode ser constatad em http://philsci-archive.pitt.edu/4778/1/Einstein_Chicago_Web2.pdf e também em várias biografias.
Abrço!
Unknown disse…
Vivemos num mundo estranho... As pessoas tem mais fé num astrólogo que em todo conhecimento científico humano.
Anônimo disse…
Achei esse blog aqui por acidente ,incrível a sua educação para responder esses comentários ofensivos ao longo dos anos
Marco Antonio disse…
Boa tarde, Leandro. Li alguns textos seus e gostei. Entretanto, neste aqui discordo a respeito da sua tentativa de desqualificar o professor Olavo de Carvalho através da velha história do academicismo. O professor sofre a antipatia da academia desde que lançou o livro Imbecil Coletivo. Entretanto já foi reconhecido como filósofo por ninguém menos que Miguel Reale (Reale foi o maior filósofo brasileiro de todos os tempos e criador da teoria tridimensional do direito). Além dele, o famoso físico Wolfgang Smith é um dos nomes de peso no âmbito internacional que corroboram a tese de que Olavo é, de fato, filósofo. Agora, se você pedir trabalhos publicados em revistas acadêmicas, será dificil atender ao seu pedido, afinal, de tanto criticar a academia, o professor Olavo se tornou persona non grata no meio. Porém sua obra é o atestado de sua importância. A teoria aristotélica dos 4 discursos e o livro O Jardim das Aflições são dois exemplos que ajudam a entender a filosofia do professor (isto é, para aqueles que desejam ser intelectualmente honestos).

Segue o prof. Wolfgang Smith falando sobre Olavo de Carvalho:

https://youtu.be/oYD66OucgJQ
fabio amaro disse…
olavo é confudo em suas argumentaçoes, similar a um esquerdista defendendo a causa é 2 pesos 2 medidas...qualquer coisa faz sentido desde que a ideologia em questào(socialismo ou olavismo)faça sentido. para esquerdistas o presidente que ficou 8 anos no poder e seu partido ficou 13 são seres intocáveis vítimas de uma teoria da conspiraçao que quer prender o mártir lula,e para olavo nasa, russia, china, e qualquer cidadão comum com acesso a satélites como sbt, globo etc fazem parte de um grande complo para mentir que a terra é o centro do universo porque na religião dele faz mais sentido...o fato é que olavo é radical, igual aos esquerdistas. mas vendo as atitudes de esquerdistas mundiais como putim, maduro, e esquerdistas secundários na colombia, bolivia, frança, espanha etc...como mídias e até os próprios políticos esquerdistas daquele determinado país, defendem uns aos outros. a diferença é que nós liberais não somos unidos, ja vimos no que dá ceder grandes poderes ao estado, o próprio pt criou 43 estatais ao longo de seus 13 anos...o fato é que a esquerda movimenta muito dinheiro. é muito mais comuk vermos a mídia de cada país defender partidos de esquerda do que de direita e isso engloba universidades, orgãos públicos e ongs que majoritariamente são financiadas pelo governo(o legal é que no próprio nome tem organizaçao NÃO governamental...) sabendo disso, é facil entender o porque o aquecimento global virou lei inquestionável nos ensinos acadêmicos mesmo tendo eras do gelo e eras de calor intenso ao longo da história humana mas defender o aquecimento global é defender a taxaçao mundial em combustíveis fósseis e quase tudo que polua de alguma forma. então essa conversa poderia levar horas e fundar o do porque olavo é tão paranóico mas observando ainda, metacapitalistas como o vale do silício inteiro, e ver que quase a maioria é esquerdista, é dificil imaginar eles defendendo igualdade. historicamente sempre que alguém poderoso veio com ese lema populista de esquerda como ditadores de sempre, stalin, chavez, fidel, hitler e mussolin entre outros populistas socialistas ja sabemos como acaba a história(sim nazismo e fascismo foram estatistas, populistas, tiveram um poder totalitário do tipo tudo para o partido nada fora do partido, ambos tinham discursos inflamados do velho nós contra eles no caso adaptado para a segunda guerra que foi a maior desgraça a nivel mundial ja ocorrida na humanidade. muitos países sairam descontentes com os resultados, com os gastos e com possíveis perdas, alemanha e italia coincidentemente estavam do lado perdedor e usaram o nós contra eles do melhor modo populista.
Caros leitores,
Obrigado pelos comentários. Marco Antônio, só agora tive tempo de ouvir o comentário de Wolfgang Smith. Ele é realmente um admirador do Olavo. No entanto, o próprio Prof. Smith não tem muito respeito entre seus pares no que diz respeito a suas crenças bizarras que beiram a anticiência. Ele nega a interpretação consensual (Copenhagen) da Mecânica Quântica, ele nega a evolução e apoia pseudociências como o Intelligent Design, e ele nega o heliocentrismo usando um argumento pueril de equivalência entre sistemas de referência. Isso está errado, como tento deixar claro no texto. O Sr. Olavo não é publicado em revistas sérias simplesmente porque seu trabalho não tem relevância.
Grande abraço!
Jean Simões disse…
Obrigado professor. Infelizmente, não é todo mundo que tem acesso ao conhecimento. Pessoas como Olavo de Carvalho, conseguem seduzir quem realmente não teve o acesso, ou a quem é simplesmente um fanático religioso que tem birra com a ciência. Não é por nada, que muitos acreditam em baboseiras como terra plana, criacionismo e outros. Abraço!