Como pensa um terraplanista?




O Estadão Podcast de 30 de setembro de 2019 buscou explicar o "fenômeno terraplanista". O podcast tem entrevistas com os colegas e amigos Adilson de Oliveira, do LabI UFSCar e Ricardo Ogando, do Observatório Nacional, além de Daniel Barros, da USP. Ele também entrevistou Bruno Alves, do canal do YouTube Mistérios do Mundo, que tem mais de 100 mil assinantes. Desde já vale a pena mencionar que três entrevistados são doutores ligados a universidades. Não consegui obter informações sobre a formação ou atuação acadêmica do Bruno.

Bruno foi quem falou por mais tempo no podcast. Versou seus argumentos sobre o formato da terra, que segundo ele é plana. Vale a pena analisar cada argumento de Bruno. Aqui tem material para tentarmos entender os mecanismos mentais que levam pessoas a pensar que a terra é plana.

  1. "A principal prova de que a terra é plana é a ausência de curvatura nas águas". Esse argumento é falso. As águas terrestres têm sua superfície curva, mas essa curvatura é muito pequena para ser notada em um pequeno lago. Em 1 km de distância a superfície baixa 8 cm. Em 10 km ela baixa 7,85 m. É muito difícil de perceber. Isso fica mais claro olhando fotos de satélite, que mostram a superfície curva dos oceanos.
  2. "Elaboramos testes: ilhas que deveriam estar encobertas respeitando esses cálculos de curvatura para uma esfera de 40 mil quilômetros. Essas ilhas deveriam estar encobertas pela curvatura do horizonte. Quando utilizamos câmeras potentes, telescópios conseguimos enxergar essa ilha. Então começamos a perceber que a questão de não enxergar alvos não tem a ver com a curvatura da terra e sim com a densidade atmosférica,  refração atmosférica e a própria perspectiva do observador porque nossa visão é piramidal então obviamente todas as linhas de nossa visão chegam até um ponto de fuga. A gente foi percebendo isso através de estudos e pesquisas. Esta eu considero a principal prova de que a terra não é um globo." Trata-se de um longo e confuso argumento. Bruno menciona uma certa ilha (qual ilha seria?) que deveria estar atrás do horizonte (a que distância do observador estaria?) devido à curvatura da terra. No entanto, segundo ele, é possível enxergar a tal ilha. Depois usa termos supostamente técnicos para justificar seu suposto resultado. Ele não menciona onde seu resultado está publicado, de forma que não é possível verificar seus resultados nem seus cálculos. Não há dúvida de que tem algum erro fundamental nessas medidas que não podem ser verificadas.
  3. "A gravidade, assim como infelizmente outras teorias científicas foi se tornando infalível. A ciência de verdade deve ser baseada em sempre estabelecer o benefício da dúvida. Quando você cria uma teoria científica que é considerada infalível, isso não é ciência, é dogma. A gravidade nada mais é do que uma tentativa teórica de se explicar um fato. Qual fato? Os corpos caem. O fato é que ele cai porque é mais denso que o ar. Se ele for menos denso que o ar como um balão de hidrogênio ou de hélio ele vai subir. Por quê isso acontece? Existem tentativas teóricas. A teoria serve pra isso. Existem várias teorias. Newton tem a teoria da gravidade. Nós temos um grande físico brasileiro que tem a teoria do efeito ilha. Temos outro grande físico holandês chamado Verlinde que tem a teoria da entropia. Então tem muitas teorias que servem para explicar um fato observável, mas isso não significa que a teoria tem que ser transformada em lei. Temos inúmeros físicos, inúmeros que assinam contra a teoria da gravidade (sic), contra a teoria da relatividade, mas infelizmente a ciência moderna virou dogma. A mecânica quântica, por exemplo, quando você vai pro nível micro, a gravidade não se enquadra, assim como a relatividade não se enquadra. Então estão ainda tentando estabelecer teorias como a matéria escura e tudo mais por causa desse desenquadramento da gravidade com a realidade que a gente observa inclusive em exames laboratoriais. Gravidade é uma tentativa teórica de se explicar um fato observável." Esse trecho demonstra claramente que o Bruno não é físico nem tem intimidade com conceitos básicos da Física. Ele se refere à Teoria da Gravitação Universal como "a teoria da gravidade". Afirma que na verdade os corpos caem por questão de densidade, sem explicar qual força faz um corpo cair por causa de sua densidade. As quedas devido às diferenças de densidade se devem justamente à força gravitacional. Na ausência de gravidade os objetos mais densos não caem. Ele menciona a teoria do "efeito ilha", supostamente de um grande físico brasileiro. Como nunca tinha ouvido falar disso, tive que pesquisar. O grande físico brasileiro é um certo Carlos José Borge, que aparentemente tem graduação pela USP. Difícil saber sobre suas credenciais científicas porque  apesar de ser um grande físico ele não tem currículo Lattes, como os físicos menos grandes costumam ter. No Linkedin tem a informação de que ele é formado pela USP. A teoria do efeito ilha na verdade é bem antiga, proposta em 1690 por Duillier e em 1748 por Le Sage. É uma tentativa cinética para modelar a gravitação a partir de supostas colisões com supostas partículas de origem obscura. O modelo é tão implausível que o prêmio Nobel em Física Richard Feynman ao ser perguntado o que achava do modelo respondeu com sua notória simplicidade: "Não funciona". Erik Verlinde  efetivamente propôs uma teoria entropica da gravitação. No entanto, ao contrário do que Bruno sugere, seus resultados são absolutamente compatíveis com a teoria newtoniana, propondo uma nova interpretação para o significado da constante de gravitação universal G. Bruno usa uma retórica muito comum entre fundamentalistas religiosos quando falam de ciência que é inventar controvérsia onde não há controvérsia. A teoria da gravitação de Newton foi formulada em seu Philosophiæ Naturalis Principia Mathematica (Príncípios Matemáticos da Filosofia Natural) publicado em 1687. De acordo com Newton, é possível expressar matematicamente a interação gravitacional atrativa F que existe entre 2 corpos quaisquer como:
    {\displaystyle F=G{\frac {m_{1}m_{2}}{r^{2}}},}
    onde G é uma constante universal, m1 e m2 são as massas dos corpos e r é a distância que os separa corpos. O valor de G é relativamente pequeno, de forma que a atração gravitacional só é facilmente detectada quando pelo menos uma das massas é grande e a distância pequena. Por isso você não está sentindo a atração de seu computador, tablet ou celular enquanto lê esse texto. Apesar da distância ser pequena as massas são muito pequenas. Mas a não ser que você esteja na ISS, você sente a atração da terra porque apesar de nossa distância até o centro ser grande a massa da terra é muito grande. Como qualquer lei física, a teoria da gravitação universal ela só foi universalmente aceita (exceto por um punhado de terraplanistas que ignoram física elementar) depois de confirmada através de medidas controladas. Em 1797 o físico britânico Henry Cavendish propôs um experimento engenhoso capaz de medir forças extremamente pequenas usando as oscilações de um pêndulo de torção. Eu mesmo fiz essas medidas durante minha graduação em Física na UFRGS. É um experimento trabalhoso, que requer medidas ao longo de dias, mas que permite medir a força gravitacional entre esferas metálicas de massa conhecida. O valor de G obtido é, dentro da precisão experimental, o mesmo obtido na interação entre qualquer objeto e o planeta terra, o que confirma a validade da lei. Não há nenhum modelo melhor que o de Newton par explicar a interação gravitacional. Nenhum físico tem dúvida em relação à validade da teoria da gravitação de Newton. Nem assinaria coisa nenhuma contra ela. Bruno também insiste numa falsa hierarquia entre uma teoria e uma lei, como se uma lei fosse um estágio mais estabelecido de uma teoria. Errado. Em ciência, uma lei descreve um fenômeno, enquanto uma teoria fornece uma explicação sobre as causas. Isso é muito bem explicado nesse vídeo das Amoeba Sisters. Bruno ainda invoca a Mecânica Quântica (não poderia faltar). Segundo ele a gravidade "não se enquadra" no mundo microscópico. Não sei muito o bem o que ele quer dizer com enquadrar, mas a gravidade é normalmente desprezada na mecânica quântica justamente porque G é pequena e as demais forças da natureza (elétricas, magnéticas, forte e fraca) são muito mais importantes e os efeitos gravitacionais não precisam ser considerados. Bruno finalmente entrega o fato de não ter treinamento em Física quando confunde testes em laboratório com "exames laboratoriais".
  4. Essa é talvez a parte mais delirante do depoimento. "A partir do momento em que a NASA começou apresentar as imagens, NASA e outras agências espaciais, a mais famosa é a Blue Marble que ficou famosa, a terra vista do espaço. Com o advento da tecnologia e de alguns aparatos tecnológicos que começaram a ser colocados nas mãos das pessoas, por exemplo o programa Photoshop. Ele não só monta imagens como também denuncia quando uma imagem é real ou falsa. Vejam o que aconteceu com a Blue Marble, que está nos nossos livros de geografia e tudo mais. Terraplanistas verificaram que existiam nuvens repetida, nuvens com desenhos estranhos, e começaram a denunciar que existiam nuvens iguais às outras. Foi assim até que a própria NASA confessou que essas imagens são compiladas por aviões que voam a grandes altitudes que vão mapeando como a Google fez com o Google Earth. Eles vão tirando fotografias e depois juntam as fotografias em um círculo. As nuvens eles compilam com computação gráfica para dar um aspecto mais bonito. Então não existe imagem real da terra tirada do espaço. São várias fotos que eles colam num círculo e a própria NASA confessou isso. Quanto à questão do eclipse, aí está o grande erro. As pessoas foram acostumadas a entender que aquilo que acontece é a sombra da terra na lua. Não é. Através de vários experimentos observáveis em vários eclipses, eu mesmo já fiz vários, todos esses experimentos eu fiz, inclusive no meu canal tem. Nesse último eclipse solar estavam sol eclipsado e lua acima do horizonte. No lunar a mesma coisa: lua eclipsada e sol ainda acima do horizonte. Portanto não é alinhamento sol-terra-lua que causam os eclipses. Muito tempo atrás os antigos que foram aqueles lá de trás que previram os eclipses na antiguidade. Inclusive os astrônomos de hoje não têm a capacidade de prever um eclipse sequer. Todos eles são previstos através dos ciclos dos antigos chineses, dos antigos sumérios, dos antigos gregos, ciclos de saros. Toda vez que você vê um eclipse vai ver assim: eclipse 52 da séries saros. Aqueles povos antigos eram todos terraplanistas e digo mais: eles estabeleceram que eram outros corpos que causavam esses eclipses. Então eu fico com a sabedoria desses povos que compilaram esses ciclos, que hoje são utilizados pela astronomia moderna porque eles são incapazes de prever um eclipse sequer se não utilizarem aqueles ciclos. Então para tudo eles utilizam esses ciclos." Essa parte é um amontoado de mentiras e desinformação. Vamos por partes. A Blue Marble original, a imagem que ilustra esse texto, é uma única foto tirada em 7 de dezembro de 1972 pela tripulação da Apolo 17 a uma distância de 29 mil km da terra. Não é um mosaico como afirma Bruno, e não há nada de errado com as formas das nuvens. Em 25 de janeiro de 2012 a NASA divulgou uma imagem composta do hemisfério ocidental em alta resolução, e a chamou de Blue Marble 2012. A NASA nunca negou que essa imagem é composta, portanto nunca precisou "confessar" nada. Não foram terraplanistas armados de Photoshop que descobriram isso, mas a própria NASA. As fotos não foram tiradas por aviões, mas por satélites que orbitam o globo terrestre. como curiosidade, é bom saber que 2 de fevereiro de 2012 a NASA divulgou uma outra Blue Marble 2012 composta, mostrando o hemisfério oriental. Em 5 de dezembro de 2012 a NASA publicou uma imagem composta noturna em alta resolução da terra, a Black Marble 2012. Bruno confunde as imagens compostas e não compostas para fazer parecer que a NASA é uma fraudadora de imagens. Isso é pura má fé. A discussão sobre eclipses é tão confusa que não consigo comentar. Além de confusa é mentirosa. Se o Bruno já viu um eclipse da lua ele sabe que não tem sol nenhum acima do horizonte. E no eclipse do sol obviamente vemos a lua entre o sol e a terra., logo ela está, assim como o sol, acima do horizonte. Dizer que os astrônomos não sabem prever eclipses é uma demonstração de ignorância em relação à ciência moderna. Eclipses vem sendo previstos há 2 mil anos, sendo que atualmente com uma precisão muito maior que usando os ciclos de Saros, que deixaram de ser usados no século 19 com o desenvolvimento de métodos matemáticos por Friederich BesselWilliam_Chauvenet. Os ciclos de Saros, que duram pouco mais de 18 anos, foram engenhosamente observados por astrônomos babilônios nos últimos séculos antes de cristo e efetivamente permitem prever datas de eclipses pois conectam os movimentos do sistema sol-terra-lua. Os ciclos de Saros só foram entendidos com o advento da teoria da gravitação universal e são uma prova do seu sucesso para descrever os movimentos dos astros.
  5. Para terminar, mais "sabedoria": "É fato que Fernão de Magalhães circunavegou a terra. Existem registros históricos assim como James Cook e outros.James Cook fez 3. É engraçado as pessoas dizerem que isso prova que a terra é um globo. É um absurdo porque qualquer um em pleno gozo das faculdades mentais sabe que ao circunavegar você faz um círculo portanto a terra é plana e circular. Se você sai de um ponto uma ilha, faz uma volta e chega do outro lado, que você fez? Circunavegou. Então obviamente as viagens de circunavegação são completamente possíveis num modelo de terra plana. Não há problema nenhum nisso. O que vai determinar as circunavegações desses caras se a terra é um globo ou é plana é o tempo. A parte onde eles circunavegaram é uma parte muito curta. Uma esfera é mais gorda no equador e vai afinando conforme vai indo pro sul ou pro norte. Eles circunavegaram na parte sul da terra, obviamente onde o tamanho seria menor, próximo à Antártida, sempre pelo sul da América do Sul. Fernão de Magalhães ainda passou por cima da Austrália e por baixo da África para voltar para a Europa. Então obviamente seria algo rápido. Pedro Álvares Cabral saiu de Portugal e passou pela parte maior da esfera que é o equador e chegou no Brasil em 21 dias. Assim como Fernão de Magalhães, que chegou à baía de Guanabara em semanas. Engraçado que na parte mais gorda da terra que é o equador, o trajeto da Europa até Brasil leva semanas, enquanto que para circunavegar pela parte pequena da terra levaram 3 anos. As viagens de Fernão de Magalhães e fr James Cook levaram em média 3 anos de circunavegação." Nessa passagem Bruno prova que além de conhecer pouco de Física e Matemática, Bruno não é muito bom em Geografia. Basta olhar um mapa mostrando o percurso da circunavegação de Magalhães, por exemplo, para apreciar o quanto a viagem de circunavegação é mais longa do que a viagem de Portugal ao Brasil. Aliás o percurso de Portugal ao Brasil foi parte da circunavegação. Comparar os tempos de viagem também não faz sentido. Os mares do sul são de navegação muito mais difícil do que o Atlântico Norte. 3 anos é um tempo até muito razoável para essa trajetória. Atualmente um veleiro faz a circunavegação em pouco mais de 40 dias.
O que mais chama a atenção na fala do Bruno é a segurança com que afirma um monte de bobagens em série como uma metralhadora. Ele provavelmente não tem formação científica como pode ser constatado pela linguagem que usa (adorei o "exame laboratorial") e pelos conceitos que postula. Ele não entende as teorias que cita, não sabe avaliar a qualidade do trabalho de um físico, não consegue ler um mapa, conta uma história confusa acusando a NASA de mentirosa e supostamente desmascarada pela turma dele. Ele não entende como é possível prever um eclipse e afirma que ninguém sabe. Ainda assim, o Bruno é referência dentro da comunidade que devido a um viés cognitivo insiste em inventar uma controvérsia onde ela não existe. Nenhum cientista sério contesta o formato da terra.
A única explicação que eu encontro é que estamos passando por uma espécie de efeito Dunning-Kruger coletivo. Os psicólogos David Dunning e Justin Kruger  ganharam o prêmio Ig Nobel de 2000 por definirem uma forma de viés cognitivo no qual as pessoas percebem sua própria capacidade cognitiva como maior que ela realmente é. Ela vem da incapacidade das pessoas para reconhecer os limites de sua própria incompetência. Por isso Bruno, que tem um conhecimento científico muito limitado, explica diversos assuntos que não entende. O processo pode ser melhor compreendido olhando a figura que representa esquemáticamente a autoconfiança em função da competência. O efeito Dunning-Kruger é a causa do pico à esquerda, onde se situa Bruno. Devido à sua baixa competência nos assuntos que aborda ele tem uma segurança enorme que se transmite a outras pessoas igualmente incapazes de um julgamento mais apurado devido a sua baixa competência. É preciso entender muito mais para que as pessoas se dêem conta de suas limitações.

Que podemos fazer para ajudar os Brunos a transporem o pico da curva e conseguirem entender o mundo?


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