Como o presidente do Brasil transformou uma droga sem nenhum efeito na mais importante aposta contra a pandemia do Coronavírus [Spoiler: não vai dar certo]
Upideite 13/04/2020: O prestigioso Retraction Watch, que monitora artigos de qualidade duvidosa em revistas científicas, publicou uma nota em 12/04/2020 na qual descreve a preocupação da Elsevier, uma das maiores editoras de revistas técnicas e científicas do mundo e coproprietária do International Journal of Antimicrobial Agents com o processamento do artigo do Prof. Raoult. Foi emitida uma nota conjunta ISAC/Elsevier. Ela garante que o processo de revisão por pares ocorreu dentro dos mais elevados padrões éticos mas que, dadas as circunstâncias, o artigo está passando por um processo adicional de revisão por pares pós-publicação. Para o bom entendedor...
Na sua transmissão semanal ao vivo, como vem fazendo já há algumas semanas, o presidente Bolsonaro mais uma vez recomendou o uso de cloroquina e hidroxicloroquina para tratar pacientes infectados por Covid-19. Por que essas drogas, que não têm efeito algum demonstrado sobre o vírus, viraram prioridade no tratamento no Brasil?
A história é longa e muito já foi escrito sobre o assunto. Aqui quero discutir principalmente os aspectos ligados à ciência e à cultura científica.
Tudo começa com um estudo mal feito. Para entender o que isso significa precisamos entender como cientistas comunicam suas descobertas. Cientistas costumam comunicar seus achados através de artigos publicados em revistas científicas. Uma diferença importante entre uma revista científica e uma revista dirigida ao grande público é que qualquer pessoa (inclusive você) pode publicar nas revistas científicas. Para isso é preciso escrever seu artigo dentro dos padrões exigidos pela revista. A revista recebe o artigo e inicia o chamado processo de revisão por pares: envia o artigo para entre 1 e 3 revisores especialistas no assunto, que vão ler o artigo e verificar se as ideias que o artigo contém são consistentes e se o que está sendo proposto ou contado segue boas práticas científicas. Cada revisor pode fazer uma de 3 recomendações:
Revistas científicas muito prestigiosas como Nature só publicam 8% dos artigos recebidos, o que garante que a qualidade dos artigos publicados é muito alta. É por isso que um artigo publicado nela tem mais prestígio do que artigos publicados em revistas menos exigentes.
O estudo sobre hidroxicloroquina contra Covid-19 foi recebido pelo editor, enviado para revisor, revisado e aceito para publicação em menos de 24h na menos prestigiosa revista International Journal of Antimicrobial Agents, a revista oficial da International Society of Antimicrobial Chemotherapy. Como muitos autores costumam fazer para permitir acesso geral ao artigo antes da publicação, uma cópia foi disponibilizada no medrxiv no momento da submissão. Medrxiv é um repositório de artigos na área médica que podem ou não ter passado por revisão por pares em revistas especializadas. Ele é usado em geral para permitir acesso a trabalhos antes mesmo da revisão e garantir assim a originalidade das ideias caso alguém envie para publicação um artigo similar.
Tem mais um detalhe no mínimo estranho em relação a esse artigo. Os autores poderiam ter enviado o artigo para publicação em qualquer revista da área, mas escolheram justamente essa cujo editor chefe é Jean-Marc Rolain, o segundo dos 3 autores do artigo. Isso normalmente não seria um problema, mas tendo em vista a rapidez com a qual o artigo passou pela revisão por pares algumas dúvidas sobre a isenção do processo de revisão por pares apareceram. O artigo contém várias inconsistências e más práticas científicas, o que causou ainda mais dúvidas em relação ao processo de revisão. Isso já foi bastante discutido aqui, aqui e aqui. O autor principal, Prof. Didier Raoult, que é o chefe do Prof. Rolain no seu laboratório, é um acadêmico com um histórico de controvérsias, acusações de fraudes e opiniões polêmicas em relação à metodologia mais usada em pesquisas clínicas, o teste randomizado duplo-cego sobre o qual escrevi nesse blog. Sua semelhança física com o druida Panoramix levou parte da imprensa francesa comparar o tratamento por hidroxicloroquina com a poção mágica tomada por Asterix e seus amigos.
O artigo é um exemplo de como não se deve fazer pesquisa sobre um medicamento. Avaliar a efetividade de uma droga é um processo longo. Primeiro, porque o pesquisador precisa ter certeza de que o efeito observado se deve à droga e não à evolução natural da condição clínica do paciente ou outra causa não controlada. Segundo, porque seres humanos (e animais também) são suscetíveis ao efeito placebo: o fato de estarem recebendo atenção pode contribuir para a cura. Para evitar essas circunstância fazemos testes randomizados duplo-cego: os pacientes são divididos em 2 grupos, um grupo recebe a droga cujo efeito está sendo estudado e outro grupo recebe um placebo (remédio sem efeito) ou uma outra droga com efeito conhecido, nos casos em que não seria ético deixar um grupo sem tratamento algum. A atribuição dos pacientes a cada grupo é feita ao acaso. Preferivelmente os estudos envolvem mais de um centro. Para evitar flutuações estatísticas, os grupos devem ser tão grandes quanto possível. Nada disso foi feito no estudo do Prof. Raoult. Não houve atribuição aleatória de pacientes aos dois grupos. Todos os pacientes tratados estavam no hospital onde o Prof. Raoult trabalha. O grupo de controle estava espalhado em outros hospitais no sul da França. O estudo não foi duplo cego: tanto os cuidadores quanto os pacientes sabiam que tipo de tratamento estava sendo feito. Mas o pior foi o estudo mal projetado: 42 pacientes iniciaram o estudo. 3 foram transferidos para a UTI. 1 morreu. 1 saiu do hospital. 1 interrompeu o tratamento devido a náuseas. Esses 6 pacientes, todos do grupo que recebeu hidroxicloroquina, foram simplesmente excluídos do estudo. Os demais 36 deixaram o hospital, sendo que os tratados saíram em menos tempo. Assim 15% dos pacientes do grupo tratado teve uma evolução muito negativa mas isso não consta nas conclusões do artigo. Ao contrário, os autores concluíram que hidroxicloroquina encurta o tempo de internação dos tratados. Esse estudo chamou a atenção do bilionário Elon Musk que tuitou a respeito. A FoxNews, rede de TV que invariavelmente apóia o Presidente Trump anunciou que "hidroxicloroquina tem 100% de sucesso contra o vírus". O presidente Trump mordeu a isca e não economizou elogios ao declarar que essas drogas "poderiam ser uma das maiores descobertas da história da medicina". Seu seguidor Jair Bolsonaro embarcou na mesma conversa e determinou que o Brasil deveria adotar esse como tratamento preferencial. Desde então, a International Society of Antimicrobial Chemotherapy que controla a revista científica onde o artigo foi publicado publicou uma nota na qual afirma que "A diretoria da ISAC acredita que o artigo não está de acordo com os padrões esperados pela sociedade". Um artigo mal feito, com conclusões erradas determinou a principal política pública do governo brasileiro em relação ao Covid-19.
Na sua transmissão semanal ao vivo, como vem fazendo já há algumas semanas, o presidente Bolsonaro mais uma vez recomendou o uso de cloroquina e hidroxicloroquina para tratar pacientes infectados por Covid-19. Por que essas drogas, que não têm efeito algum demonstrado sobre o vírus, viraram prioridade no tratamento no Brasil?
A história é longa e muito já foi escrito sobre o assunto. Aqui quero discutir principalmente os aspectos ligados à ciência e à cultura científica.
Tudo começa com um estudo mal feito. Para entender o que isso significa precisamos entender como cientistas comunicam suas descobertas. Cientistas costumam comunicar seus achados através de artigos publicados em revistas científicas. Uma diferença importante entre uma revista científica e uma revista dirigida ao grande público é que qualquer pessoa (inclusive você) pode publicar nas revistas científicas. Para isso é preciso escrever seu artigo dentro dos padrões exigidos pela revista. A revista recebe o artigo e inicia o chamado processo de revisão por pares: envia o artigo para entre 1 e 3 revisores especialistas no assunto, que vão ler o artigo e verificar se as ideias que o artigo contém são consistentes e se o que está sendo proposto ou contado segue boas práticas científicas. Cada revisor pode fazer uma de 3 recomendações:
- Publicar como está ou com pequenas correções.
- Publicar após revisão significativa. Novas medidas, novas interpretações novas figuras podem ser necessárias.
- Não publicar quando o artigo contém falhas ou inconsistências graves.
Revistas científicas muito prestigiosas como Nature só publicam 8% dos artigos recebidos, o que garante que a qualidade dos artigos publicados é muito alta. É por isso que um artigo publicado nela tem mais prestígio do que artigos publicados em revistas menos exigentes.
O estudo sobre hidroxicloroquina contra Covid-19 foi recebido pelo editor, enviado para revisor, revisado e aceito para publicação em menos de 24h na menos prestigiosa revista International Journal of Antimicrobial Agents, a revista oficial da International Society of Antimicrobial Chemotherapy. Como muitos autores costumam fazer para permitir acesso geral ao artigo antes da publicação, uma cópia foi disponibilizada no medrxiv no momento da submissão. Medrxiv é um repositório de artigos na área médica que podem ou não ter passado por revisão por pares em revistas especializadas. Ele é usado em geral para permitir acesso a trabalhos antes mesmo da revisão e garantir assim a originalidade das ideias caso alguém envie para publicação um artigo similar.
Tem mais um detalhe no mínimo estranho em relação a esse artigo. Os autores poderiam ter enviado o artigo para publicação em qualquer revista da área, mas escolheram justamente essa cujo editor chefe é Jean-Marc Rolain, o segundo dos 3 autores do artigo. Isso normalmente não seria um problema, mas tendo em vista a rapidez com a qual o artigo passou pela revisão por pares algumas dúvidas sobre a isenção do processo de revisão por pares apareceram. O artigo contém várias inconsistências e más práticas científicas, o que causou ainda mais dúvidas em relação ao processo de revisão. Isso já foi bastante discutido aqui, aqui e aqui. O autor principal, Prof. Didier Raoult, que é o chefe do Prof. Rolain no seu laboratório, é um acadêmico com um histórico de controvérsias, acusações de fraudes e opiniões polêmicas em relação à metodologia mais usada em pesquisas clínicas, o teste randomizado duplo-cego sobre o qual escrevi nesse blog. Sua semelhança física com o druida Panoramix levou parte da imprensa francesa comparar o tratamento por hidroxicloroquina com a poção mágica tomada por Asterix e seus amigos.
O artigo é um exemplo de como não se deve fazer pesquisa sobre um medicamento. Avaliar a efetividade de uma droga é um processo longo. Primeiro, porque o pesquisador precisa ter certeza de que o efeito observado se deve à droga e não à evolução natural da condição clínica do paciente ou outra causa não controlada. Segundo, porque seres humanos (e animais também) são suscetíveis ao efeito placebo: o fato de estarem recebendo atenção pode contribuir para a cura. Para evitar essas circunstância fazemos testes randomizados duplo-cego: os pacientes são divididos em 2 grupos, um grupo recebe a droga cujo efeito está sendo estudado e outro grupo recebe um placebo (remédio sem efeito) ou uma outra droga com efeito conhecido, nos casos em que não seria ético deixar um grupo sem tratamento algum. A atribuição dos pacientes a cada grupo é feita ao acaso. Preferivelmente os estudos envolvem mais de um centro. Para evitar flutuações estatísticas, os grupos devem ser tão grandes quanto possível. Nada disso foi feito no estudo do Prof. Raoult. Não houve atribuição aleatória de pacientes aos dois grupos. Todos os pacientes tratados estavam no hospital onde o Prof. Raoult trabalha. O grupo de controle estava espalhado em outros hospitais no sul da França. O estudo não foi duplo cego: tanto os cuidadores quanto os pacientes sabiam que tipo de tratamento estava sendo feito. Mas o pior foi o estudo mal projetado: 42 pacientes iniciaram o estudo. 3 foram transferidos para a UTI. 1 morreu. 1 saiu do hospital. 1 interrompeu o tratamento devido a náuseas. Esses 6 pacientes, todos do grupo que recebeu hidroxicloroquina, foram simplesmente excluídos do estudo. Os demais 36 deixaram o hospital, sendo que os tratados saíram em menos tempo. Assim 15% dos pacientes do grupo tratado teve uma evolução muito negativa mas isso não consta nas conclusões do artigo. Ao contrário, os autores concluíram que hidroxicloroquina encurta o tempo de internação dos tratados. Esse estudo chamou a atenção do bilionário Elon Musk que tuitou a respeito. A FoxNews, rede de TV que invariavelmente apóia o Presidente Trump anunciou que "hidroxicloroquina tem 100% de sucesso contra o vírus". O presidente Trump mordeu a isca e não economizou elogios ao declarar que essas drogas "poderiam ser uma das maiores descobertas da história da medicina". Seu seguidor Jair Bolsonaro embarcou na mesma conversa e determinou que o Brasil deveria adotar esse como tratamento preferencial. Desde então, a International Society of Antimicrobial Chemotherapy que controla a revista científica onde o artigo foi publicado publicou uma nota na qual afirma que "A diretoria da ISAC acredita que o artigo não está de acordo com os padrões esperados pela sociedade". Um artigo mal feito, com conclusões erradas determinou a principal política pública do governo brasileiro em relação ao Covid-19.
Comentários
A questão é tentar ou não quando o risco de morte é iminente.
Creio que o porst não deveria mencionar políticos. A impressão que se tem ao ler o post é que o autor é PTista.
Obrigado pelo comentário.
Para esclarecer sua impressão, o autor não é petista.
Medicina contemporânea precisa ser baseada me ciência. Senão voltaremos ao tempo das sangrias e emplastros. Não existe nenhuma evidência de eficácia para a hidroxicloroquina contra covid-19. Não adianta administrá-la "para tentar".
Abraço!
Neste mundo atual, onde 'fake news' é tratada pateticamente como "opinião alternativa"; tudo pode ser politicamente polarizado no formato "nós [mocinhos] x eles[vilões]" e pseudociência é formulada como "achismo aceitável" e o desespero comanda todas as pessoas anti-quarentena desejando q tudo volte ao normal, os malucos atacam tudo e todos que apenas desejem ser objetivos/eficientes/proativos em analisar o que pode ser feito com defesas farmacêuticas contra o covid-19.
Nada mais a acrescentar 😤😥😷😞😠😡😎😔
...
Informações interessantes. Complicado mesmo a situação do país