A pandemia de Covid-19 deu origem ao desenvolvimento de vacinas em tempo record. Nunca na história foi possível desenvolver e testar vacinas tão rapidamente.
O presidente do Brasil nega a gravidade da doença. Apostou e aposta em soluções sem base científica. Na iminência da disponibilidade da vacina não perde uma oportunidade de desacreditá-la e fazer afirmações absurdas baseadas em desinformação a seu respeito. Já insinuou que a vacinação poderá nos transformar em jacarés ou mesmo causar mudança de sexo. Deve ser essa a razão para o uso de duas doses, para garantir que depois de duas mudanças de sexo as pessoas voltem a seu sexo original.
A
primeira versão do Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19, publicado em 10/12/2020 afirma que:
"A interrupção da circulação da covid-19 no território nacional depende de uma
vacina altamente eficaz sendo administrada em parcela expressiva da população
(>70%)."
A segunda versão, de 16/12/2020, curiosamente chamada de 1a edição, é um pouco mais cuidadosa:
"Considerando a transmissibilidade da covid-19 (R0 entre 2,5 e 3), cerca de 60 a
70% da população precisaria estar imune (assumindo uma população com interação
homogênea) para interromper a circulação do vírus. Desta forma seria necessária a
vacinação de 70% ou mais da população (a depender da efetividade da vacina em
prevenir a transmissibilidade) para eliminação da doença."
Parece que o governo entende que vacinando 70% da população o problema está resolvido. Será?
Ao mesmo tempo, usando uma lógica muito peculiar, defensores da "liberdade" entendem que vacina não deve ser obrigatória. Receber ou não imunização na opinião deles se trata de uma escolha pessoal. Será?
Como discuti anteriormente, a melhor maneira de entender uma epidemia é usando modelos compartimentais. Nesses modelos dividimos os indivíduos de uma população em compartimentos. Na sua forma mais simples, o modelo SIR, usamos 3 compartimentos: S para os Suscetíveis, I para os Infectados e R para os Recuperados, que no modelo são imunes à contaminação. Escrevemos as equações que determinam as regras de passagem de um compartimento para outro, resolvemos tudo num computador e seguimos a evolução temporal. Esse modelo super simplificado tem muitas limitações mas permite entender várias características básicas.
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Tkarcher, CC BY-SA 4.0 |
Para entendermos o efeito da vacinação precisamos entender como uma epidemia se espalha. Na figura ao lado os
Suscetíveis são azuis, os
Infectados vermelhos e os
Recuperados amarelos. No início da epidemia toda a população está
Suscetível, exceto poucas pessoas
Infectadas. Nessa situação, numa população homogênea, essa pessoa
infectada contaminará em média
R0 pessoas. Na medida que o tempo passa alguns
Infectados terão se
Recuperado. Algumas pessoas no círculo de contatos de um
Infectado estarão
Recuperados e a taxa de contágio diminuirá para um valor
Reff < R0 porque agora há menos
Suscetíveis em contato com o
Infectado. Quando
Reff = 1 o número de
infectados atinge o máximo e começa a diminuir. Essa situação é chamada de
imunidade de rebanho. Como num rebanho, a quantidade de
Recuperados protege os
Suscetíveis da doença e o agente causador da epidemia não consegue mais se propagar. Assim a epidemia termina. Podemos mostrar que isso ocorre quando a proporção de imunes na população é 1-1/
R0. Para Covid-19, com
R0 entre 2.5 e 4.5 chegamos à imunidade de rebanho com algo entre 60 a 78% da população imune. O problema é que Covid-19 é letal para 0.5 a 1% dos infectados. Esperar que 75% da população fique imune porque contraiu a doença significa que cerca 0.75% morrerá. No Brasil estamos falando de mais de 1,5 milhão de pessoas. Na verdade esse número é exagerado. Devido às medidas de isolamento social o valor de R
0 diminuiu. Mesmo assim teríamos um número muito grande de vítimas.
No contexto dos modelos epidemiológicos, vacinas têm como efeito aumentar artificialmente a proporção de imunes na população de forma que se atinja imunidade de rebanho sem que uma proporção grande da população precise se infectar. As vacinas magicamente transferem os indivíduos diretamente do compartimento de Suscetíveis para o de Recuperados sem passar pelo de Infectados. Uma vacina ideal confere imunidade para todos os vacinados. 100% de eficácia. Se existissem vacinas assim todos os vacinados ganhariam imunidade e os não vacinados estariam sujeitos à infecção. Tomar ou não vacina poderia ser uma decisão individual, como alguns liberais exigem. Azar de quem não tomar a vacina. Com uma vacina ideal é fácil determinar que porcentagem da população precisa ser vacinada para atingir imunidade de rebanho: no caso de Covid-19, com 75% da população vacinada a doença passa a diminuir até desaparecer.
Na vida real as vacinas não são 100% eficazes. Algumas podem ter eficácia muito alta. Outras podem ter 60%. Uma parte dos vacinados não desenvolve imunidade. Precisamos modificar o modelo compartimental para incluir a eficácia das vacinas. Quando fazemos isso obtemos alguns resultados surpreendentes. Se usarmos uma vacina de alta eficácia como a da Pfizer-BioNTech com
95%de eficácia atingiremos imunidade de rebanho vacinando 70% da população. Só que o Brasil não tem a logística necessária para essa vacina. Se, no entanto, usarmos a vacina da AstraZeneca, a preferida do governo federal, com
70.4% de eficácia só atingiremos a imunidade de rebanho se vacinarmos pelo menos 95% da população, ou seja praticamente toda a população. Se a eficácia da vacina for menor que 65% não atingiremos a imunidade de rebanho nem mesmo vacinando 100% da população e precisaremos manter o distanciamento para sempre.
Qual o significado disso? A ciência tem algo a dizer sobre vacinação na situação atual: A Vacinação precisa ser obrigatória. Ao contrário do que afirma o Ministério da Saúde não basta vacinar 70% da população. Ao contrário do que afirmam os "defensores da liberdade", a decisão de se vacinar não pode ser tomada na esfera individual. Na ausência de uma coordenação coletiva não atingiremos a imunidade de rebanho e não controlaremos a pandemia nunca. Não se trata de opinião ou desvario. Este é o resultado do melhor modelo científico.
Comentários
Eu acrescentaria uma consideração sobre pessoas que não podem ser vacinadas - em geral por deficiências de imunidade, que podem ser causadas por tratamentos contra câncer ou transplantes. Mesmo se a vacinação for muito eficiente, essas pessoas continuam no grupo S. Quem não aceita a vacina está literalmente matando os mais vulneráveis.
É como disparar uma metralhadora num cinema lotado. Os anti-vacinas devem ser excluídos do convívio humano..